domingo, 28 de dezembro de 2008

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Um copo de café


Quando eu contava lá uns 23 anos, constatei, de fato, que de brasileiro eu só tinha a nacionalidade impressa nos documentos. Os fatos sempre estiveram ao alcance da minha percepção, claros como água que brota na nascente: averso a futebol, praia, caipirinha e a todos os outros aspectos que formam o arquétipo tupiniquim. Contudo, foi com um elemento não muito denunciador que caí em pura epifania.

Perceber que, de todas as pessoas que conhecia, só eu nunca havia tomado um copo de café foi uma experiência iluminadora. Nenhum modo de preparo ou derivado do produto genuinamente brasileiro me apetecia; nem puro, com leite, expresso, cappuccino, forte, fraco, amargo, com açúcar, com creme, nem balas, sorvete ou bolo. Absolutamente nada.

Não pude evitar certo sentimento de exclusão, que na verdade estava mais para não-adequação – um estrangeiro dentro do meu próprio país. Precisava descobrir, então, minha verdadeira pátria, uma mãe zelosa que abraça ao filho carente de cuidados e com a qual eu plenamente me identificasse, vivendo em exemplar harmonia, bem como deve ser entre um aborígene e sua terra nativa.

Engraçado como as bebidas são perfeitos mecanismos de revelação. Análoga à comprovação de não-brasilidade foi a descoberta de minha pátria de espírito. Minha ontogênese certamente gritava alto evidenciando meus gostos pelo que tinha origem naquela próspera ilha européia, mas eu parecia não ouvir. Preparando-me para uma noite em vigília, sentado no escritório e absorto no vapor que emergia do conteúdo da xícara, veio-me o cair da ficha. Mais do que um simples passatempo de quem trabalha pensando, o chá era um item que resumia uma adolescência ouvindo rock and roll britânico e rindo do humor inigualável dos Monty Python.

Dali em diante, inglês convicto. O que me fez compreender, aliás, o porquê de meu ódio ao irritante sotaque paulista, com seus erres retroflexos: a pronúncia britânica do inglês era mais leve sem o peso dos erres.

Literalmente num futuro do pretérito, mudei-me para a Inglaterra, quando abriram duas vagas lá, na empresa em que trabalhava. Morar na terra da rainha não teve como causa única a recente constatação, em relação linear. Na verdade, esse sempre fora um sonho desde meados da adolescência, reforçado pelos acontecimentos últimos.

Enfim na Inglaterra, era como se eu tivesse aportado em lugar seguro, após longa viagem por terras estranhas. Desse adjetivo, aliás, deve vir o substantivo “estrangeiro”, aquele que vem de terras estranhas. Mas isso não passa de mera especulação etimológica. De todo modo, apesar das iniciais dificuldades com o idioma, pois tinha uma fluência que deixava a desejar em pequenos pontos, minha adaptação corria bem. Não tive problemas com a imigração por ter já o passaporte português, o que ainda me poupou de muita burocracia e eventuais constrangimentos.

Quanto aos costumes, esses eu tirei de letra. Não senti falta da comida nem da hospitalidade do brasileiro, que para mim nunca foi nada além de assanhamento ou, quem sabe, um exemplo de sublimação a ser estudado pelos psicanalistas. Também o frio não me assustou muito, e dava graças a Deus por não enfrentar aquele calor insuportável do verão dos trópicos.

Passou-se um ano e por fim estava inteiramente estabelecido, com moradia própria, um modesto círculo de amizades e pequenas diversões. Aconteceu que, certo dia, recém-saído do expediente, entrei num pub para beber algo e descontar na bola de sinuca a raiva que estava de um superior meu no trabalho. Sentei e mandei vir uma cerveja, de preferência da mais vagabunda para me deixar logo embriagado e talvez esquecer a tarde.

Por total azar, que mais tarde eu entenderia por sorte, o desgraçado estava lá também, a poucos metros, tomando qualquer coisa que não pude precisar e assistindo a um jogo de futebol tampouco interessante. Não sei se pelo efeito de três garrafas já consumidas ou sóbria, embora irracional, vontade de vingar-me, pensei seriamente em levantar e encher a cara da criatura de porrada ou, nem eu sabia que era capaz de idéias tão perversas, cortar-lhe o pescoço com um caco de vidro proveniente duma garrafada prévia.

Tive os pensamentos interrompidos por gritos raivosos ou apenas aliviosos de gol. Aproveitei a confusão que se instalara naquele recinto acanhado e tomei a direção da saída, mas antes ouvi uma voz que me chamava. Óbvio, não podia ser alguém além de mim. Virei, num gesto maquinal. Ele acenou, gritou meu nome novamente e finalizou, “venha cá”.

Fui ao seu encontro já sem a vontade de rasgar-lhe a goela. Cumprimentamo-nos e ele disse que não me esperava por lá, que era cliente há tempos e nunca me vira. “Entrei por acaso”, foi o que consegui responder. Em seguida, como se entendesse tal acaso pediu-me desculpas pelo que havia dito mais cedo. Explicou-me que tinha de mostrar sua autoridade ante os demais subordinados, afinal era o chefe, que se não se impusesse o escritório viraria uma bagunça. “Nada funciona sem hierarquia bem definida”, encerrou.

Algo em seu modo de falar ou na expressão me fez crer que ele estava sendo sincero no que dizia. Tudo aquilo me soou não tanto como um pedido de desculpas por arrependimento, mas um meio de ilustrar como as coisas funcionam na empresa. Com a naturalidade com que me punha tudo isso, percebi que era intrínseca ao bom inglês a aparente rispidez nas relações de trabalho. Aceitei, enfim tinha sido um erro meu. Entendi minha raiva mais como uma defesa contra admitir que no Brasil tivesse sido diferente. Não havia motivo, portanto, para fazê-lo sangrar até a morte.

A conversa fluiu como se fossemos velhos amigos que se reencontravam após anos de separação. Falei do Brasil e ele demonstrou interesse, o que me fez gastar mais tempo do que poderia imaginar narrando o dia-a-dia dum típico carioca. Ficou surpreso quando disse que não ia muito à praia e perguntou, então, pelas garotas. “The girls”, com um gesto de volúpia na face, e acrescentou dizendo que eram as mais bonitas do planeta. Discordei, alegando sonhar em casar-me com uma inglesa loira ou morena, “whatever”, mas que tivesse os olhos azuis. Ele brincou: “você me importa uma brasileira bem gostosa e eu lhe apresento uma autêntica inglesa – nosso pacto”. Concordei e assim encerramos nosso papo, ele deixando uma generosa gorjeta para o atendente e saindo com o terno de tweed num dos ombros.

Duas semanas depois voltamos a nos encontrar, dessa vez num bar em Covent Garden, ele acompanhado duma belíssima loira cujos seios, mesmo cobertos por um suéter preto, esbanjavam sensualidade. E eu pensava comigo, “lucky bastard”. Fomos apresentados e então soube que não se tratava de sua namorada. Ao sentarmos todos na mesa ele disse: “nosso pacto”. Lembrei daquele dia no pub. Eu achara que ele estivesse brincando. Mais tarde, enquanto a loira tinha ido ao banheiro expliquei-lhe as dificuldades de “importar um brasileira”. Sua resposta foi simples: “sou casado, você não.”. Entendi que não havia obrigações de minha parte em nosso pacto, mas ele quisera fazer-me um favor.

Com a loira apontando à porta do banheiro feminino, encerramos o assunto e quando ela sentou-se de volta estávamos fingindo tratar de trabalho. E assim a conversa tomou os rumos que deveria, a loira rindo a cada deixa minha. Já ensaiava perguntar a meu amigo se ela era alguma espécie de acompanhante, caso ela se retirasse da mesa novamente. Mas, ao contrário, permaneceu lá, cada vez mais interessada na conversação.

Algumas horas depois, ele levantou-se, de súbito, e despediu-se de nós. Com o celular numa das mãos acenou para nós fazendo cara de “que pena”, como se dissesse “aconteceu um imprevisto” ou algo semelhante. Perguntou-me ainda antes de sair se eu podia levar a loira em casa depois. Respondi que sim, sem na hora importar-me como.

Continuamos a conversar, intermitentemente sorvendo algum drink. Com a saída de meu companheiro, ares mais íntimos se instalaram naquela mesa e nossas considerações a três sobre assuntos triviais deram lugar a perguntas mais pessoais. E confirmei que, de alguma maneira, ela estava interessada em mim.

Foi com nenhuma surpresa que ela recebeu meu “sou brasileiro”. Confessou-me: “seu sotaque é uma graça”, o que explicou aquele sorriso constante durante minhas falas. Ademais, acresceu: “sou apaixonada pelo Brasil, o calor, as comidas, os sucos, o carnaval e especialmente os homens”. Após uma frase como essa, não poderíamos parar em outro lugar que não em meu pequeno apartamento, o palco de minha primeira noite de amor européia.

Dali em diante eu só pude agradecer ao meu companheiro. E só de pensar que eu quisera lhe dar umas boas bofetadas... De todo modo, nos meses que se seguiram eu e a loira namoramos até que um ano e meio desde o primeiro encontro resolvemos nos casar, apesar dos conselhos. As pessoas não aceitavam que eu pudesse me atrelar até o fim da vida a uma mulher que tinha levado para a cama logo no primeiro encontro. Cheguei a discutir com meu companheiro, o mesmo que havia me apresentado minha então noiva.

Não dei ouvidos a ninguém que não ao desejo cego de acordar sempre ao lado de uma inglesa bela e sensual. Saímos em lua-de-mel para o Brasil, pedido dela. Em sua primeira vez lá, havia experimentado apenas o Rio e São Paulo. Sua cobiça era conhecer Salvador. Ficamos num hotel na orla, e, durante uma semana, fomos praticamente a todas as praias entre a Barra e Itapoã. Na semana seguinte iríamos conhecer os principais pontos turísticos da cidade.

Era segunda-feira de manhã quando deixei o hotel para ir à casa de câmbio e resolver alguns assuntos do trabalho. Na ocasião, disse à loira que provavelmente só retornaria à tarde, que ela almoçasse lá pelo hotel. Tomei um táxi e parti rumo ao Pelourinho. É fato, havia outros locais de troca, mas queria aproveitar para dar uma breve volta pelas ruas do centro histórico soteropolitano. Não sei em que parte do percurso, mas vinte minutos após ter partido, ocorreu-me que tinha esquecido as malditas libras para trocar. Pedi ao taxista que retornasse. Ele, feliz por ver crescerem seus lucros, atendeu e em mais vinte minutos estava de volta ao hotel. Subi ao quarto apressadamente e entrando sem bater deparei-me com uma cena decepcionante: minha paixão deitada na cama com um indivíduo qualquer, desnuda, brindando não sei o quê com um maldito copo de café em mãos.

Engraçado como as bebidas são perfeitos mecanismos de revelação.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Petite nouvelle d'une femme

Femme en blanc au jardin, Claude Monet

Ouvira dizer que os franceses eram homens encantadoramente românticos. Assim também seria o seu, pensava. Casou-se e atravessou o oceano. Arquitetara para si uma residência na Champs Élysées: uma vida regada a vinho do Valée du Rhone, ao som de Charles Aznavour e perfumada com as mais deliciosas eaux de parfum.

Pensou em seus petits enfants. Ensinar-lhes-ia a o português. Comeriam petit gâteuau todo dia e dariam todos um petit passeio pelo Jardin des Tuileries. No verão, o destino seria o Château de Versailles ou algumas semanas em La Baule. Não faltariam, certamente, um par de semanas em alguma pequena a charmosa cidade do sudoeste.

Estava petit enganada e parou num cul-de-sac. Foi traída, apanhou do marido e está de volta ao Brasil, em colônia de funerária, após coma alcóolico à la Valée du Rhone. Enterrada com cânticos fúnebres, hoje mora no Cemitério dos Pequenos Sonhos, ou, como ousaria preferir um dia, no Cimetière des Petites Rêves.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Gnothi s'auton


Naquele dia, o totó perdeu-se em filosofias tentando entender o que se passava entre aqueles dois homens se agredindo na rua.

domingo, 30 de novembro de 2008

Caatinga

a caatinga:
cinza

do garrancho
retorcido,
do pensamento
esquecido,
do riacho
corrido
ido

na caatinga:
a gota d'água pinga
traz o verde,
mata a sede
que se teve
por um riacho
ido
corrido:
o cinza

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Ânus 70


A dupla Page e Plant, atuando nos recentes longinquos anos 70

Há muito tempo, numa discoteca muito, muito distante havia aquela cara, que abalava as noites de sexta-feiras ao chacoalhar freneticamente sua estrutura óssea em contratempos, antecipando a filosofia dream-theateriana. Era Lé de Zé Pelim, madeixas inimigas dos pentes e calças tão apertadas que por pouco não o rachavam ao meio, aproveitando a fissura glútea.

Em certa ocasião, ele que esperava por Darth Vader para lhe vender as balinhas de menta, ia amarrando os cadarços da mente, com um Hollywood entre os dedos. As luzes da bola cintilante dependurada do teto encandeavam os olhos de Lé de Zé Pelim, alterando levemente o fenótipo de seu “azinho-azinho”.

Da multidão, o amigo Vader surgiu e lhe entregou os comprimidos. Ele os ingeriu depressa. Lentamente, as luzes cintilantes que encandeavam seus olhos passaram a ser projetar, tal qual lâmpadas fluorescentes com som acoplado. E num devaneio interplanetário, lá estava Lé de Zé Pelim duelando com seu amigo de outrora, Darth Vader.

O embate durou centenas de milhões de anos-sem-luz, e, aproveitando o tropeço dos cadarços amarrados, o traficante estelar conseguiu desferir um golpe mortal no cambaleante Lé, cujo final foi o contato brusco com o chão.

No meio da pista da dança, um Ramone distraído foi testemunha do cumprimento da profecia. Como se tivessem apertado o review do vídeo cassete de não sei quantas cabeças, Lé de Zé Pelim retornou à posição inical.

 Hey, ho! É um milagre brasileiro!  vociferou sem acordes punk o Ramone.
– Que a força esteja com você!  e sublimou o Lé de Zé Pelim.


Outro mini-conto da parceria Rudá-Thadeu, guardado no HD e agora liberado para o deleite do público

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Batatas

Quando eu era criança minha mãe dizia que batatas faziam bem pra saúde. Hoje eu acredito, depois que um saco delas que eu carregava rente ao peito quando voltava do supermercado me salvou de uma bala perdida.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Adolescência

– Não aguento mais essa vidinha, esse povo falso, egoísta. Só pensam em suas vidas, suas vaidades. Eu cansei. Tem momentos que eu preciso é ficar sozinha, me isolar um pouco do mundo.

– Toma o dinheiro, vai!

Saiu. Foi fazer compras.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Brancura

Haven, Vladimir Kush

saltando do mar celeste,
um navio que percorre
suave

um pirata que avista
a torre em cima do monte,
a proteger
o jardim de flores
da rainha distante
no trono, mandante

sem vontade,
seu povo
ao capricho do vento
que esculpe com talento
feições
e canções

ao crepúsculo,
partiu o navio ao horizonte
e com ele o pirata

também a torre ruiu
e lá se foi
o império da rainha

eram apenas nuvens.

sábado, 1 de novembro de 2008

Negócio da China

La persistencia de la memoria - Salvador Dali


Em um camelo paraguaio de sotaque francês:

− Esse relógio é à prova d'água?
− É, mas melhor não testar.

Apesar da queda do sr. Dow Jones, a transação ocorreu sem maiores turbulências. No final, o turco vendedor acena seu kipá.

− Hasta la vista, monsieur.


Possivelmente o primeiro mini-conto escrito em parceria no mundo. Ou pelo menos a primeira entre Thaudeu, do 100 Fundamentos, e eu.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Um quarto de loucura


O quarto de cima foi cúmplice de todos os meus pecados. Tantos que cada tijolo por trás daquela pintura suja de tempo e cimento deve guardar um na memória. Para cada móvel de madeira escura, uma confissão. Para cada quadro, um pedido: agonizante, para "O grito"; depressivo, para um Picasso cujo nome não lembro; e pedidos ordinários de chuva ou sol para aquelas obras vagabundas sem assinatura. E na greta da janela que mal iluminava o ambiente, morava a esperança de lucidez além daquelas paredes estreitas.

domingo, 26 de outubro de 2008

Quadrilha

Ratinho amava Ana Prego que trazia os produtos pra Zé Bala
que foi chefe de Tonha que tinha caso com Neguinho que ameaçou Tininha
que não tinha antecedentes criminais.

Ratinho foi para a Colômbia, Ana Prego para o presídio,
Zé Bala morreu de tiroteio, Tonha ficou para cafetina,
Neguinho teve overdose e Tininha matou Dom-dom
que era recém-chegado no morro, ameaçando tomar sua boca.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Dia do Professor

E no final das contas a pró Terezinha voltou para casa feliz por, ao menos naquele dia, não ter sido convidada pelos seus lindos pupilos a ir para o diabo que a carregasse.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Uma vez idéia, sempre idéia

Recentemente, todo bom brasileiro que se preze se achou no direito de dar o seu pitaco sobre o recente acordo ortográfico. Se pela conjuntura ou por real interesse com a coisa, já é outra história.

O fato é que só os blogues devem amontoar uma quantidade de informação desse assunto suficiente para uns dois anos de leituras. Tem gente que é contra ou a favor mas não sabe por quê, tem gente que não sabe o que é mas tem opinião formada e tem gente que sabe mas não tem. Esse último, meu caso. Pelo menos até hoje.

Reformas no idioma, a priori, buscam uma melhora. Prefiria crer que a unificação da língua portuguesa não fosse uma brincadeira de menino e se vários especialistas, de diversos lugares, decidiram por agir de tal maneira é porque há motivos que o justifiquem. Mas agora vejo o despropósito desse acordo. Vão acabar com o acento da palavra idéia. Poxa, afinal é a marca do meu blogue que está em jogo. O agudo para mim é tão parte do vocábulo quanto o i ou d. Sem ele, ficará algo mutilado como uma árvore sem suas folhas.

Sei que não vou aderir à essa ideia, e vou ficar com minha antiga idéia. Se eu ceder, daqui a pouco vão querer arrancar o acento de "Rudá" também. Então, peço adesão a todos ao Manifesto Anti-castração de Idéia, pois sem o agudo, estão levando junto o assento da palavra.

Por último, vai haver punição por não escrever dentro das novas regras ou, no máximo, ou vou ser o burro que acentuará idéia?

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Certeza


Voltei àquele dia
posso te fazer uma pergunta?
um beijo, você disse sim

Imaginei
no futuro, outra pergunta
dissemos sim

O presente,
te amo
não há dúvidas

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

The Great Rick In The Sky

Hoje, esbocei algumas palavras que pretendia dedicar ao grande Rick. Achei-as insuficientes, deslocadas. Resolvi então apropriar-me de uma breve carta de David Gilmour, em seu web site, em homenagem ao seu grande parceiro. Acredito ser ela mais adequada e verdadeira do que qualquer manifestação minha, por fatores vários, em especial pela sutileza e simplicidade com a qual ele expôs seus sentimentos.

No one can replace Richard Wright. He was my musical partner and my friend. 

In the welter of arguments about who or what was Pink Floyd, Rick's enormous input was frequently forgotten. He was gentle, unassuming and private but his soulful voice and playing were vital, magical components of our most recognised Pink Floyd sound. 

I have never played with anyone quite like him. The blend of his and my voices and our musical telepathy reached their first major flowering in 1971 on 'Echoes'. In my view all the greatest PF moments are the ones where he is in full flow. After all, without 'Us and Them' and 'The Great Gig In The Sky', both of which he wrote, what would 'The Dark Side Of The Moon' have been? Without his quiet touch the Album 'Wish You Were Here' would not quite have worked. 

In our middle years, for many reasons he lost his way for a while, but in the early Nineties, with 'The Division Bell', his vitality, spark and humour returned to him and then the audience reaction to his appearances on my tour in 2006 was hugely uplifting and it's a mark of his modesty that those standing ovations came as a huge surprise to him, (though not to the rest of us). 

Like Rick, I don't find it easy to express my feelings in words, but I loved him and will miss him enormously.

Em tradução livre e rápida:

Ninguém pode substituir Richard Wright. Ele foi meu parceiro musical e amigo. No tumulto de argumentos sobre quem ou o que o Pink Floyd era, a grande contribuição de Rick era frequentemente esquecida. Ele era amável, modesto e recatado mas sua voz e atuação espirituosos eram vitais, mágicos componentes do nosso som. Eu nunca toquei com alguém igual a ele. A mistura da sua e minha voz e nossa telepatia musical tiveram sua aurora em 1971, em 'Echoes'. Para mim, os grandes momentos do Pink Floyd são aqueles em que ele estava presente inteiramente. Além do mais, sem 'Us and Them' e 'The Great Gig In The Sky', as quais ele escreve, o que teria sido 'The Dark Side Of The Moon'? Sem sua leve pegada não haveria o álbum 'Wish you were here'.

Em meados de nossos anos, ele ligeiramente perdeu seu jeito, mas no início da década de 90, com o 'Division Bell', sua vitalidade, vigor e humor voltaram e então a reação do público às suas aparições na minha turnê em 2006 só veio a acrescentar, e é a marca de sua modéstia que ele ficava surpreso (embora nós não) quando era aplaudido de pé.

Como Rick, eu não acho fácil expressar meus sentimentos em palavras, mas eu o amei e irei muito sentir a sua falta.

Faço minhas as palavras do Gilmour. And shine on you great Rick...

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Cores: ruim com elas, pior sem elas

Depois da última postagem, um ode ao azul, me senti ingrato para com todas as espécies de verde do blogue. Apostei todas as minhas fichas como eles estariam resmugando "aquele safado... nós damos um pouco de cor nessa joça e ele fica enaltecendo a concorrência". 

Hoje, recebi uma carta do Sindicato dos Verdes Cujo Comprimento de Onda Varia Entre 492 e 577 Nanômetros na qual estava escrito, num verde bem forte, que se eu não me retratasse publicamente por meu último ato eles, os Verdes, entrariam em greve. O pior de tudo é que os safados também mobilizaram o Preto, que solidariezados com a causa também não dariam suas caras, ou melhor, seus espectros luminosos por aqui. Aí eu gelei! Sem o verde, vá lá, mas sem o negro das postagens era uma vez um blogue. De quebra, ainda estão movendo uma ação indenizatória contra minha pessoa por quebra de uma das cláusulas do contrato de prestação de serviços colorísticos. 

Sem saída, me reuni com os líderes dos Verdes mais alguns representantes das outras cores. Depois de um longo dia de negociações, chegamos a um consenso. A Justiça irá decidir se devo ou não pagar indenização aos Verdes. Enquanto isso eles continuam aqui prestando seus serviços, sem greves, paralizações ou qualquer tipo de manifestação.

Agora é esperar o parecer do juiz, e desejar que me seja favorável, afinal não fui eu, foi tudo culpa do meu eu-lírico.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Do azul

De sterrennach - Van Gogh

O azul me embriagou
penetrou-me o sangue,
cor da aristocracia
o viscoso azul dos nobres

Cor dos oceanos
da Terra vista do cosmos
cor de paz
não, a paz é branca
mas ainda gosto do azul,
são dessa cor as baleias
que vivem no mar também anil
ou seria turquesa?
tanto faz...
o inconteste?
sua beleza

Se menina, transcenderia o paradigma
rosa para as gurias,
não, não
azul, sim,
quem dera fosse azul o capim
dos nossos lindos verdes campos

Meu sonho
de todas as noites
é pulsão do inconsciente,
cair numa taça de azul
que me embriagou
e penetrou-me o sangue

sábado, 6 de setembro de 2008

Wish

An der Schwelle der Ewigkeit - Vicent van Gogh


"I wish I could be a better me", that man told me once. Since then I have not seen him anymore.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Movimiento estudiantil


Veste ropas rojas como señal de protesta. Barbas ramificadas en la cara. Sólo un ideal: viajes para conferencias. “Disney World, por favor”.

*Mini-conto originalmente exposto no 100 Fundamentos, do caro Thadeu. Uma mente brilhante por trás dum blogue deveras original.

domingo, 24 de agosto de 2008

De quatro em quatro anos


Scuola di Atene, Raffaello Sanzio

Perído pré-eleitoral é uma festa. A cafajestagem política cresce, e os gestores e aspirantes omissos e indolentes aparecem dignos, íntegros nos cartazes, forjando um caráter ímpar. São os pretensos salvadores da pátria, heróis; os hércules da modernidade.

A população se enche de esperança. Sentem como se chegasse a hora da virada, em que finalmente irão se livrar da caótica administração de seu pedaço de mundo. A consciência política parece crescer, a agitação faz brotar o sábio eleitor ávido de mudança. Mas é tudo ilusão. O sentimento de grandiosidade e cidadania é efêmero. Sucumbe à magica retórica dos senhores do alto de seu palanque e à paixão cega pelos candidatos cujo plano de governo resume-se a arruinar aquele pedaço de mundo.

O eleitor então repete o gesto de 4 anos atrás e elege mais uma cambada de incompetentes corruptos e criminosos. E passa-se mais 4 anos de inércia, pão e circo, assistencialismo, corrupção, favorecimento, enriquecimento ilícito e crimes cuja citação não me cabe ou, melhor ainda, não cabe nesssa breve crônica. Até que vennham as vésperas da próxima eleição e repita-se o ciclo...

Esses são os fatos como eles são, mais do que evidentes. Só me resta ainda um segredo que hei de desvendar. O que embranquece a memória do povo? Seria o mesmo Photoshop dos brancos dentes estampados nos cartazes?

sábado, 23 de agosto de 2008

Dúvida


– Papai... pra onde é que... a gente vai... quando morre?
– Pro céu, filinha, pro céu.
– Então... promete que vai me visitar...

domingo, 17 de agosto de 2008

Consciência ecológica


João ia desembrulhando cuidadoso sua bala de 5 centavos enquanto andava pela calçada . O papel, jogou-o no chão; caiu rente ao meio fio, na avenida asfaltada. Arrependeu-se de imediato e abaixou-se para pegar o papel vagabundo. Foi aí que veio uma moto e o atropelou.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Animal Farm



Pequena homenagem à obra A revolução dos Bichos (Animal Farm), de Orwell. Na charge, o cerne de toda a discussão do livro.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Ao Sr. Schopenhauer


Arthur Schopenhauer, Ludwig Sigismund Ruhl

Caro Sr. Schopenhauer, antes de mais nada quero registrar a necessidade de escrever-lhe diretamente. Este documento, entretanto, tem lá sua importância e por isso é possível que aguce a curiosidade alheia. Não me surpreenderia, portanto, que viesse a cair em mãos que não as suas, mas afirmo veemente que a pendência é entre nós dois, um gigante do século XIX e um zé-ninguém dos anos 2000.

Escrevo na certeza de uma resposta, pois sei que para o senhor, dotado de inúmeras qualidades, auto-reconhecidas e auto-exaltadas, os obstáculos que impedem nossa comunicação são facilmente superáveis. Não tenho dúvidas de que um profundo conhecedor e estudioso de línguas, como o senhor, tem o meu humilde português como mais um item em seu vasto repertório de idiomas, mas se por acaso faltar-lhe a ciência sobre a “última flor do Lácio”, estou certo de que seu raciocínio agudo e sagaz, juntamente com o conhecimento do Latim e até mesmo de outras línguas que Dele derivam, farão do senhor um hábil leitor. Espero que, ao escrever Latim em letra capital ressaltando Sua superioridade ante esses dialetos que hoje a Europa conhece como línguas nacionais, perceba meu respeito pelas suas idéias e leia-me com alguma atenção.

Se o senhor foi assaz condescendente para iniciar e continuar a corrente leitura até aqui, seria sensato de sua parte aceitar minhas devias escusas por não dirigir-lhe a palavra em Alemão, esse idioma soberano, embora não-clássico, e também por talvez estar sendo confuso e mesmo ininteligível. Não é que eu queria forçar um estilo. Com toda a sinceridade, afirmo-lhe que tento ser o mais natural e breve possível.

Voltando à questão das barreiras que nos separam, a única que me fez hesitar antes da escrita dessa mensagem foi o fato de o senhor estar morto. Obviamente, considero que o esteja de fato, afinal, se de alguma maneira tivesse descoberto o segredo da vida longa e vivesse nos dias de hoje, por certo não estaria se escondendo, às sombras ou vivendo no anonimato. Primeiro, porque o anonimato lhe causa ojeriza e, depois, porque é de sua natureza exibir-se.

Pois bem, agora vamos ao âmago de minha contestação. Recentemente, entrei no mundo de suas idéias através do brilhante Parerga e Paraliponema. Na verdade, não fiz a leitura completa da obra, mas apenas dos escritos relacionados à literatura, língua e erudição. Cito-os aqui: “Sobre a erudição e os eruditos”, “Pensar por si mesmo”, “Sobre a escrita e o estilo”, “Sobre a leitura e os livros” e “Sobre a linguagem e as palavras”.

Diversas foram as minhas considerações e opiniões acerca dos textos a que me refiro, ora concordando, ora encontrando algumas divergências. Eu poderia enumerar diversos tópicos para debate, mas seria desnecessário, além de trabalhoso. Questões válidas, no entanto, e muito interessantes. Assim, vou me centrar nos pontos que mais me chamaram a atenção quando da leitura desses textos.

O primeiro deles é o mau-humor crônico que lhe é característico. Esse quadro de rabugice eterna na verdade é um transtorno psiquiátrico conhecido como distimia. Muito provavelmente o senhor foi um distímico, um sujeito amargo, que reclamou de tudo e só viu angústias e infortúnios mesmo no mais belo nascer do sol. Por isso tenho lá minhas dúvidas sobre sua causa mortis. Pobre, Schop! Acho que mentiram para o senhor. Disseram-lhe pneumonia em vez de infarto ou AVC, sei lá... algo provocado por toda a amargura guardada e também pelas despejadas em seus escritos.

Não me entenda mal. Não estou criticando seu mau humor. Pelo contrário, ele é sua marca. Ele é você e você é ele. Não existiria Schopenhauer sem mau humor e vice-versa. Sabe, deixe-me contar uma história. Os novos dicionários da língua portuguesa adicionaram o verbete Schopenhauer, ou Chopenrrauer (aportuguesado). Adivinha o que ele significa? (risos) Brincadeira, viu Schop? Só para descontrair. Ah, desculpe. Você não sabe o que é isso (risos). Outra piada. Agora que estamos mais íntimos, que criei um clima mais amigo, vou chamá-lo de Schop. Pode ser?

Então, como eu ia dizendo, o chopen... digo, o mau-humor é sua marca. Não haveria graça em lê-lo se não tivéssemos que imaginar qual seria o próximo xingamento para alguns de seus adversários. Ah, Schop, você precisa ver como está o mundo moderno. Sabia que suas idéias hoje são bastante influentes? Acredita que recentemente criaram um curso de "como denegrir a imagem do seu inimigo com classe"? Apostilas baseadas em sua obra.

O outro fato que me levantou uma tremenda curiosidade foi como você tem tanto conhecimento acumulado. Além de um grande pensador, foi um poliglota sem igual. Latim, grego clássico, sânscrito, inglês, francês, italiano e espanhol, além do materno Alemão. Essas são as que nos foram permitidas saber. Não me espantaria que houvesse mais algumas a citar. Mas o que me intriga não é que você tenha todo esse conhecimento, afinal de uma mente brilhante tudo se espera, e sim como você o adquiriu sem tanta leitura. Sim, porque "as pessoas que passam suas vidas lendo e tiram sua sabedoria dos livros são semelhantes àquelas que, a partir de muitas descrições de viagens, têm informações precisas a respeito de um país (...) no fundo não dispõem de nenhum conhecimento coerente", em suas próprias palavras. Só posso concluir que você nunca foi apegado a leitura, especialmente a de má qualidade. Então fica a curiosidade de como vieram as aulas de idiomas que nos dá em Parerga e Paraliponema. Já nessa época você era agraciado com o dom da violação do tempo e conseguia retrocedor em séculos e mais séculos para adquirir as noções de latim e grego?

Ainda sobre idiomas, outra curiosidade. Qual o problema com os "repulsivos sons nasais"? Tudo bem que os alemães nunca se deram bem com os franceses, o que lhe dá motivos para desmerecer a língua dos gauleses, mas que, pelo menos, se atenha às características peculiares do falar desse povo. Eu, como lusófono, me ofendi com essa declaração de ódio aos belos sons nasais. Seria despeito por não saber pronunciá-los corretamente? Nesse ponto, você foi infeliz.

E para finalizar, que a carta está ficando muito extensa, só queria cutucá-lo mais uma vez: você falou mal de Deus e o mundo, atirou pedras aos sete cantos do mundo e em matéria de literatura foi o crítico mais ferrenho de todos os tempos. Desconsiderou a literatura alemã e mundial de seu período. Nem sua mãe lhe escapou à língua firina. Seriam os escritores da época tão lastimáveis assim? Ou o seu mau humor influenciava até na hora de emitir um juízo sobre a obra alheia, fazendo pouco de tudo o que não lhe apetecia? Talvez você fosse um crítico muito parcial, tomado pela mágoa de ter tido um reconhecimento tardio, em seus últimos anos de vida. Ou talvez os alemães de seu tempo fossem bons comedores de chucrute enquanto escritores mesmo, o que é mais provável, dada sua superioridade diante dos outros seres humanos.

Prometo que agora encerro de verdade. Só aproveitando a deixa do último parágrafo. Olha, aqui vai um conselho de amigo. Você é gênio, cara. Não há como negar. Um homem num patamar acima dos demais. Mas não deixa isso lhe subir à cabeça. Pode pegar mal, causar mal-entendidos. Nunca se sabe. Nem todos compreendem a genialidade.

É isso, Schop! Foi uma mensagem breve e amigável. Queria escrever mais, mas agora devo dedicar-me à reflexão, pensar por mim mesmo. Afinal, nos dias de hoje, ainda dá para fazer isso e mais nada da vida. Leio, penso e cuido do meu cachorro. Sou desocupado mesmo, sou filósofo.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Consulta Médica


На приеме у врача, Владимир Маковский
No médico, Vladimir Makovskii

O doutor:
- O senhor precisa comer ferro. Está com suspeita de anemia.

Nova consulta, raio-x, desenhos estranhos, objetos pequenos, cortantes:
- Mas que diabos. O que aconteceu com o senhor?
- Sabe como é, doutor. O feijão tá caro, o quiabo também...

domingo, 13 de julho de 2008

Rock 'n' who?


Rock-Rock, Richard Lindner

Décadas depois, Roy Blues e Dick Jazz se encontram em um show de alguma banda de pesados acordes distorcidos e melosas letras: sobrancelhas franzidas e uma mútua interrogação.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

1 ano de idéias


Hoje o blog completa 1 ano de idéias. Foi um ano irregular, cheio de altos e baixos, momentos de muitas idéias, outros de sinapses não muito produtivas. Junte-se histórias, críticas, humor (pelo menos na intenção), contos, memes, tentativas, erros, acertos e, ao final de tudo, o amadurecimento.

No primeiro post não sabia direito o que era blog, nem blogar, nem muito menos o que era ser blogueiro. 1 ano se passou e eu continuo sem saber, mas o importante é que aquele primeiro texto bobo, inocente, despretencioso foi o início de um projeto interessante que é o Das Idéias de Caio Rudá.

Esse projeto aos poucos cresceu, ganhou leitores, premiação em concurso (vide menus laterais), selos, e o mais importante: reconhecimento. Pois nada paga um comentário bem elaborado sobre seu texto, a crítica, o elogio, especialmente porque está cada vez mais difícil pessoas que venham ao seu blog só pelo gosto de ler, sem querer a contrapartida da visita.

Em números, são quase 3 mil visitas e cerca 5200 visualizações de páginas. Uma média de 8 pessoas por dia. Além disso, foram 36 postagens, 37 com a presente e 235 comentários. São números modestos, se comparados o outros blogstars, mas dadas as circustâncias do blog, considero boas marcas.

Ah, as circunstâncias, a falta do por que e como fazer. Sim, porque por trás de um blog, há alguém que o escreve, quem lhe dá forma. E esse trabalho não é tão simples assim. É muito fácil ser filial do Youtube, copiar e colar notícias de outras fontes, plagiar outros autores, contar que comeu arroz com batata e depois teve disenteria, colocar uma letra de música e divagar curtindo uma de filósofo. Mas escrever contos, compartilhar crônicas, críticas e outras reflexões demanda tempo.

Pensei em um nome bem abrangente que não limitasse as características do blog ao criá-lo. Daí Das Idéias de CR, pois tudo é idéia, tudo deriva dela. E essa foi a filosofia de escrita no princípio. Contudo, mesmo com essa licença para expor o que quer fosse, com o passar do tempo aprendi a lapidar as idéias e não postar só pelo prazer de fazê-lo.

E assim será: aprendendo, melhorando e se possível agradando, mesmo que somente a um, desde que desse um venha o reconhecimento.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

E agora, José?

José acordou às 5 da manhã, ou não. Estava de pé, executando aquele ritual antes de sair para a faculdade, mas talvez ainda dormisse. Sim, porque fora dormir já era mais de meia-noite, fato que se repetiu pela quinta vez consecutiva na semana, ou seja, de segunda a sexta perdendo suas noites de sono. Levando em conta que todas as suas semanas desde que começou a estudar foram assim, ele já poderia estar acostumado. E sim, a rotina o acostumou a: fazer a cama, banho, três biscoitos e café, dentes escovados, conferir caderno e classificadores e outras manias mais que possuía- coitado, tinha TOC - necessariamente nessa ordem . Já fazia tudo isso sem se dar conta, pois essas atividades já eram reguladas pelo seu sistema nervoso autônomo. Faltando uns 15 minutos para as 6 horas, quando ele descia e o porteiro do prédio lhe dava bom-dia, ele acordava de fato. Aí vinha a amnésia... "será que tá tudo aqui? Fechei a casa direito? Comi o que mesmo?".

Assim era José. Não podia ter tudo ao mesmo tempo. Ora a consciência, ora a memória. Quando esta finalmente resolvia dar o ar de sua graça, vinha a preocupação. Achava que estava tendo problemas com a memória de curto-prazo, aquela que o professor havia comentado nas aulas de sistema límbico. Coitado do José, dessa vez aperreado com seu hipocampo. Por que foste estudar neuroanatomia, José? Então ele ia rumo ao ponto de ônibus. Qual deles? A vida de José não era fácil. Tinha que refletir, ponderar, avaliar, calcular e tomar uma decisão rápido. Ou o ponto da loja de departamento, que era mais perto mas só havia uma opção ou o ponto da padaria que era um pouco mais distante mas havia, no mínimo, duas opções. Também, o trajeto do ônibus do primeiro ponto era curto, cerca de 25 ou 30 minutos, mas era superlotado enquanto que os ônibus do ponto da padaria levavam em média 40 minutos para chegar ao destino de José, mas ele sempre ia sentado e confortável pois subia no início de linha. Ultimamente, José tinha preferido ficar com o ponto da padaria, por motivos vários.

E realmente José não era dos mais sortudos. Naquele dia, justo naquele dia, em que ele não podia se atrasar, o destino pareceu conspirar, mais do que o de costume, contra o pobre estudante. Em cada ponto, subiam dez e descia um. E com isso a viagem demorava. Cada parada daquela significa 1 minuto perdido, calculava ele. De quebra o ônibus enchia de pessoas. Era como se toda a população de Salvador resolvesse tomar o Campo Grande R1, via Cardeal da Silva. Apesar da demora, José, otimista, sorria aliviado como quem pensasse "pior não pode ficar". Doce ilusão. À medida que via subir, pela porta da frente, aquela camisa xadrez vermelha sua felicidade se esvaecia. Era seu professor de estatística, idoso, que precisava de um lugar para sentar. José era educado, e mesmo que não o fosse, como evitar ceder seu assento? O tal professor tinha ido em sua direção, como quem exigisse o gesto de respeito para com os mais velhos. E ele se levantou, e lembrou que não ia com a cara do velho. Não ia bancar o cordial e conversar com ele. Puxou seu mp3 do bolso e pôs no ouvido - e é ouvido mesmo, pois só funcionava um dos fones. Mesmo assim José ia recuperando a alegria por estar prestes a viajar ao som de algum rock alternativo, mas a alegria não veio: o aparelho estava descarregado. Deixou o fone lá, mesmo sem música alguma. Pelo menos não seria mais incomodado.

E quem conhece Salvador sabe como é irritante aquele engarrafamento do Rio Vermelho. Não faço referência a algum em especial, porque qualquer ponto do bairro é um tormento para os motoristas. E naquele dia, José não havia de escapar de ficar preso em uma daquelas ruas do velho bairro boêmio. Ele não quis nem olhar as horas. Apenas abaixou a cabeça e fechou os olhos, à espera do sacolejo de um ônibus em movimento, o mesmo sacolejo de que tanto reclamava em outros momentos. Vê, José? Não existe certo nem errado, somente circunstâncias; tudo é relativo e nunca diga nunca.

Felizmente, muitos minutos depois e poucos metros a mais, José conseguiu sentar. Também pudera! Mal a senhora tinha acabado de se levantar ele já estava colocando suas pernas por trás dela, garantindo o lugar. E, sentado, foi ensaiando sua parte no seminário sobre psicanálise que apresentaria mais tarde. A concentração foi tamanha que quando percebeu já estava perto da faculdade. E ele enfrentaria outra odisséia. Trombadas, bundadas, braçadas e tudo o mais a que tinha direito para conseguir atravessar aquela aparentemente intransponível massa humana até a porta do ônibus. Mesmo corpulento e desajeitado, José conseguiu saltar a tempo, antes do motorista seguir caminho.

E lá ia José, descendo a estrada de São Lázaro. Sua recusa em saber as horas lá no ônibus o fez desorientado àquele instante. Não sabia o horário nem fazia idéia, apesar de ter um bom "relógio interno", como se gabava. Apressou-se o sujeito descente. Viu que estava atrasado 10 minutos e ainda havia uns 600 metros a percorrer. Tinha que chegar. Na verdade, já deveria estar lá. Correu então o José. E como correu. Estava cada vez mais perto da faculdade. Como não estava acostumado aos exercícios físicos e trabalhava dentro dos limites dos 90 quilos distribuídos em pouco mais de 1 metro e 60 de altura, foi desacelerando enquanto seu coração aumentava suas batidas. Nessa horas em que o coração bate forte todos pensam que vão ter um infarto. Com José não foi diferente. Sedentário, avô cardíaco, fortes indícios. Felizmente não confirmou sua suspeita. Foi aí que José pôs os pés na faculdade e sentiu no peito o alívio de chegar, e em seguida cair, vítima de uma bala perdida de um tiroteio entre traficantes do Calabar e a polícia militar. Porque você é duro, José, mas você morre.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Primeiros passos em Filosofia

La Conquista del Filosofo, Giorgio de Chirico

Dois meses já se foram sem que ao menos um post aparecesse. Não se trata de descaso com o blog (não mesmo, afinal não seria digno comigo mesmo boicotar uma das poucas coisas de útil que já fiz). É que faculdade é coisa séria e consome um bom tempo de um pobre estudante.

Se por um lado acabei, em parte, com minha vida social e reduzi minhas opções de lazer - e olha que ainda não comecei a estudar de fato -, por outro pude entrar no meio acadêmico, esse que irá me dar, daqui para frente, um pouco mais de conhecimento para escrever my crappy ideas.

Uma das disciplinas que agora fazem parte da minha rotina e que contribuirão com esse conhecimento, e cuja maravilha que é estudá-la não havia percebido até então com aqueles breves e infelizes contatos preliminares de Ensino Médio ou com os jargões mais famosos, como o "cogito ergo sum" ou "penso, logo existo" de Descartes, e que contribuirá, direta ou indiretamente, é a Filosofia.

Como já dito, essas primeiras experiências não foram muitos satisfatórias. Nada fazia brilhar os pensamentos filosóficos, e assim iam permanecendo além do meu alcance. Seu caráter esotérico, o qual eu fazia questão de manter, mesmo sem querer, contribuía com a construção de sua abstrusidade. Não que ela não o seja. Com efeito, ainda há muito que permanece, à primeira vista, incompreensível, enigmático, porém a base do conhecimento filosófico, e isso é importante, é de fácil compreensão, para não dizer cotidiano. É por isso que o filósofo britânico David Hume afirma que é certo o fato de que a filosofia simples e acessível terá sempre preferência sobre a filosofia exata e abstrusa. A grosso modo, seria possível ver o conhecimento filosófico sob duas óticas distintas, a fácil e a difícil, a simples e a complexa, a cotidiana e a afastada.

Deixando de lado, a difícil, complexa e distante filosofia, pode-se ver com clareza sua proposta mais básica e essencial: a da salvação. Esse é o termo empregado por Luc Ferry, em sua obra Aprender a Viver, a qual "demonstra que a filosofia não é um mero exercício da reflexão crítica (o que mais se aproxima da versão difícil, complexa, afastada). É uma busca de saúde, da vida boa, uma tentativa de salvar nossa própria pele". Sim, porque é inerente ao homem a busca por esses elementos. As formas de fazê-lo é que são as mais diversas, e o exercício filosófico configura-se como apenas mais uma delas.

Essa salvação proposta por Ferry não se limita, portanto, ao sentido religioso da felicidade eterna. Está ligada também à compreensão do mundo e da vida, ao apaziguamento das angústias provocadas pela finitude e irreversibilidade da existência humana. Eis, então, dois conceitos essenciais para o entendimento dessa teoria da salvação, pois são, respectivamente, a morte e a impossibilidade de reversão dos acontecimentos passados os grandes causadores da aflição humana. Desse jeito, vista como a medicina da alma, a filosofia é uma doutrina que nos faz "compreeder que a morte não deve amedrontar", dizia Epicuro. Ela é uma saída para o indivíduo através de si mesmo e do uso de sua razão.

Assim, ao longo dos séculos, a filosofia, muito embora tenha se encarregado de trabalhar com temas mais complexos, preservou a característica básica de salvação, ou seja, de busca por uma vida melhor. Sabendo isso é que agora, para mim, a filosofia perdeu aquela carapaça abstrusa e impenetrável, a qual foi substituída por uma membrana fina, de simples transposição, cujo mediador é unica e simplesmente a vontade de pensar a vida.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Dos rumos que a vida toma

Em 28 de janeiro de 1808, o então príncipe regente de Portugal, D. João VI, decretou a abertura dos portos às nações amigas. Em 28 de janeiro de 1856, foi fundado o Banco da Espanha, e 31 anos depois, à mesma data, foi colocada a primeira pedra da Torre Eiffel, símbolo mundialmente conhecido da capital francesa. Também em 28 de janeiro, desta vez em 1935, polêmica criou-se quando a Islândia tornou-se o primeiro país a legalizar o aborto. Tragédias também incorporam o rol dos acontecimentos do 28 de janeiro; em 1986, 73 segundos após seu lançamento, explodiu a espaçonave Challenger, matando 7 pessoas.

Nasceram, a 28 de janeiro, o rei Henrique VI da Inglaterra (1457-1509), o papa Clemente IX (1600-1667), o apresentador Raul Gil (1938), o badalado presidente francês Nicolas Sarkozy (1955), o jogador senegalês Papa Bouba Diop (1978), o ator Elijah Wood, que interpretou o sr. Frodo no filme O Senhor dos Anéis (1981) e minha prima Laurence (1991).

Qual seria, portanto, o marco de 28 de janeiro de 2008, apenas mais um dia em que você, leitor, ficou em casa navegando por horas a fio na internet lendo blogs de alguns desocupados - como o meu, ou saiu para passear com seu amor, tomar um sorvete, andar na praça, ou simplesmente procedeu conforme a rotina, acordando já com as mesmas obrigações a torturar-lhe a mente e indo dormir estressado com os acontecimentos de um dia ordinariamente ordinário?

Para quem lhes escreve, 28 janeiro foi o dia em que um resultado, mas especificamente o do vestibular da UFBA, veio implacável, trazendo consigo todas as emoções que só uma aprovação num bom curso de Ensino Superior podem oferecer. Envolto em mitos e visões deturpadas, eis que a vasta área da Psicologia me aguarda, apontando, desde já, a faca de dois (ou até mais) gumes que será estudá-la.

Passada a infância, quando se quer ser, no caso de um menino, jogador de futebol, astronauta ou cientista, a Psicologia começou, little by little, a constar como opção de carreira. Não sei se o que mais me fascinava era aquela visão do exercer o trabalho de psicólogo, com direito a um escritório com livros a perder de vista, divã, almofadas, quadros e esculturas, criando uma atmosfera de introspecção, ou a Psicologia em si em seu amplo e atraente campo de atuação, ou mesmo a esperança de uma resposta - por um distante, tortuoso e obscuro caminho - para a vida.

O certo é que cresci respondendo "psicólogo", sempre que me perguntavam qual seria minha profissão. É difícil dizer se eu tinha toda essa determinação, ou se essa resposta já obedecia à lei da acomodação, pela qual isentava-me de pensar, e dava uma resposta direta, rápida. Na hora da decisão, balancei quanto ao que queria de fato. Chuva de "se", "por que", "será"e "tomara". Inconstâncias à parte, fortemente influenciadas pela recente descoberta das maravilhas das Letras, acabei optando definitivamente pela área onde já brilharam Jung, Watson e Freud. Talvez não seja próprio dizer, mas Psicologia era e ainda é um sonho, mesmo que, às vezes, tomados por insegurança.

Infelizmente, a aceitação e busca desse sonho estão incondicionalmente ligado a um fato, senão horrível, incômodo: a interrupção abrupta de uma vida no interior para a inserção selvageria de uma metrópole. Ficarão distantes uma família, amizades, uma namorada e uma rotina que, por mais chata que eu a tenha chamado durante todos esses dias, vai me fazer muita falta. Não cabe destacar, entretanto, todos os pormenores, contratempos e problemas que fazem parte da (sub)vida de um universitário longe de casa. Difícil, mas necessário. Esse é o lema, o retrato da situação.

Ainda me falta uma semana de vida pré-28-de-janeiro-de-2008. Vida que está, em parte, registrada aqui. Talvez, nessa vida pós-28-de-janeiro-de-2008, o Das Idéias de Caio Rudá passe de blog a museu...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O menino e a chuva

Para o sertanejo, a queda da água é sempre um acontecimento diferente, incomum, às vezes, raro. O homem do sertão está habituado a esperá-la, esperá-la e esperá-la, até que, finalmente, ela venha, aconteça e mate as saudades de quem tanto quis vê-la, senti-la. Alguns não aguentam esperar e partem para os mais diversos destinos; algumas viagens são curtas, outras têm passagem apenas de ida, gratuita.

O menino nordestino acostumara-se a esperar, no verão, durante suas férias, as trovoadas. Era um espetáculo. Chuvas fortes, ventos ruidosos, o brado dos trovões e relâmpagos a iluminar, por um segundo, a abóbada celeste. Com as luzes apagadas, ou pela queda da rede elétrica, ou por simples convenção familiar, ele olhava, da janela do apartamento, para fora e via o desenrolar daquela peça, cujo palco era a rua e a água que batia contra o chão, árvores e construções a artista. Alheio aos perigos das tempestades e ao inexorável sofrimento de quem é vítima de uma casa alagada ou da perda de um ente querido, ele maravilhava-se com a representação do poder da natureza. Não sabia explicar por que achava tão bela e magnífica a mesma cena que a outrem causava espanto, ou que, ao menos, impusesse respeito. Sorria ao passo que rezavam. Queria a prolongação do espetáculo do qual pediam o cessar. Criança, coitado. Não entendia que essa mesma chuva que ele admirava causava estragos. Apenas gostava de vê-la cair, fazer poças e escorrer pelo pequeno declive rente ao meio-fio das calçadas.

Agora crescido, o menino não podia deixar de se impressionar com o cair das gotas d'água. O céu amanhecera totalmente nublado, cinza. Um prenúncio do que estava por vir. Então, choveu. Choveu naquela manhã de quinta-feira. Choveu como há muito tempo não se via, como ele não via. Não que se tratasse de seca. É certo que gotas d'água, durante esse período, já tinham se chocado contra esse chão castigado, de onde brotam, ambas verdes, plantas e a esperança. Mas acontece que há chuvas e chuvas. Eram as trovoadas.

Após um longo período sem o êxtase por admirar esse fenômeno, ainda sentia todas as emoções da mesma forma, como se tivesse sido algo constante em sua vida. Nem mesmo os momentos duros do início da adolescência foram capazes de tirar-lhe da memória as boas lembranças e o fascínio pela chuva. Esses permaneceram inatingíveis ao isolamento do menino, à depressão e ao sofrimento. Resistiram às noites insones e aos dias amargos. Não sucumbiram perante à vontade de sumir no mundo, até mesmo, do mundo. Permaneceram guardadas, intactas, algures onde o menino ainda sentia o gosto pela vida.

E, como o verde do sertão, que resplandece e traz de volta, ao sinal da primeira garoa, a exuberância à vegetação, as recordações conservadas do menino vieram à tona, trazendo a fecilidade que, antes, parecia ter-lhe virado as costas. Quedou-se alegre, vivo. E lembrou-se da infância, das suas traquinagens, surras, diversões e, é claro, das noites de tempestade, da água a bater no chão e correr pelas ruas. Então, veio a memória de alguns episódios especiais. Não podia deixar de lembrar da avó, cujos cabelos em muito se assemelhavam à imagem do céu nuvioso. A avó tão querida, que lhe fazia todos os mimos e atendia-lhe todas as vontades; a avó que lhe fazia suco de manga para comer com biscoitinhos e cocadas; a avó que trazia quantos cobertores fossem necessários para acabar com o frio; a avó que ele aprendeu a amar e respeitar mais do que qualquer outra coisa no mundo. Também a mãe estava presente nos pensamentos. Apesar de dura, gostava dele. Era um sentimento recíproco. Eram incapazes de dizer "eu te amo" um ao outro, mas em seus corações esse sentimento crescia, sem extravazar, acumulando-se. Sem dúvidas, o maior amor não declarado existente na Terra. O pai, ah, o pai... ninguém no mundo é capaz de duvidar do seu carinho pelo filho. E o menino o sabia. Justamente por isso, que não admitia que falassem mal dele, mesmo por brincadeira. Nessas ocasiões, a raiva do garoto elevava-se tão vistosamente que todos percebiam, e faziam questão de redimir-se nas infelizes palavras ditas. O menino adorava o pai, não somente pelas tardes maravilhosas que ele lhe proporcionava no parque, na piscina, nos jardins da praça, com direito a sorvete escondido da mãe - "Maluco! O menino tem a garganta frágil!" - e passeios de bicicleta, mas, principalmente, porque ele era quem estava presente na hora de dormir, a contar estórias que toda criança gosta de ouvir e conduzi-lo ao sono tão tranqüilamente. Coisas de pai.

Faziam parte das rememorações a escola, os amigos, os primos. Também aqueles conhecidos com quem nunca fora com a cara, apesar dos insistentes afagos e beijos que recebia deles; a vendedora de picolé, que ia de casa em casa com sua bicicleta verde, em cuja garupa carregava a caixa de isopor colorida com os picolés dentro; o senhor da banca do jornal; a dona da casa rosa da esquina; d. Rosinha, a cativante vendedora de doces que se transformou numa de suas melhores amigas. Como não resgatar da mente as aulas da 1ª série, e com elas as professoras, porteiros, secretárias e a dona da lanchonete da esquina, onde comprava fiado? De alguma forma, todas essas pessoas fizeram parte de sua vida, ora como meros coadjuvantes ou companheiros de palco, na pequena peça de sua vida. Esse palco gigantesco, alternado conforme a situação. Como não reviver as brincadeiras de escola, o pé torcido na gangorra, as fotos vestido de índio no carrosel, as trilhas feitas pelos arredores da cidade com os vizinhos da frente, o dia em que quase se afogou na piscina, ainda sem saber nadar? Tudo isso, exatamente tudo, o enchia de sensações, as mais diversas sensações, através da qual sabia definir precisamente o momento a que ela se referia.

Mas a chuva não durou muito tempo, e ainda restava muito para ser revivido. Certamente não passou por todos os momentos por que queria passar. Ficou na vontade. Só lhe restou esperar por outra chuva para, só aí, poder lembrar, recordar, sentir, gostar, amar novamente. O problema é que, já se sabe, no Sertão, a chuva nunca avisa quando vai voltar. Tampouco, pode-se prever. E o menino terá que esperar, esperar, esperar. Ou, quem sabe, partir.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Use óculos


Não raro nos pegamos a observar com aquele olhar profundo para incautos sujeitos que andam distraidamente na calçada, ou que estão na fila do banco, completamente inocentes. Eles não imaginam que, a poucos metros de si, alguém pode estar a traçar minuciosamente seu perfil psicológico, lição básica do manual “A arte de bisbilhotar”.

Nesse tipo de construção da imagem alheia, os óculos são um item crucial na determinação das características, conferindo um certo ar de intelectualidade a quem os usa. Tanto acredito nessa afirmativa que me rendi ao fenômeno da estereotipagem ao comprar meus novos óculos. A intenção foi substituir a armação antiga, leve, fina e mais arrojada, por uma mais cheia, clássica, bem ao estilo escritor, cuja aparência me colocaria mais de acordo com o propósito da literatura.

Certamente Drummond não seria reconhecido pelo seu talento se não usasse óculos. Também João Ubaldo Ribeiro e Manuel Bandeira. Benditos são esses óculos que servem de auxílio à visão, verdadeiros olhos, e que também colaboram com a imagem de cult, genuínos passaportes para o sucesso artístico.

Quer ser ouvido? Use óculos. Suas palavras irão soar como conselhos de um sábio. Quer ser referência? Usé óculos. Sua figura se valoriza com eles em sua cara. Quer ser jornalista? Use óculos. Suas matérias estarão na capa de jornal. Quer ser escritor? Use óculos. Você irá entrar para a Academia Brasileira de Letras. Quer bancar o inteligente sem saber patavina? Use óculos. É um verdadeiro fato alquímico; do cobre ao ouro, da ignorância à sabedoria.