quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O menino e a chuva

Para o sertanejo, a queda da água é sempre um acontecimento diferente, incomum, às vezes, raro. O homem do sertão está habituado a esperá-la, esperá-la e esperá-la, até que, finalmente, ela venha, aconteça e mate as saudades de quem tanto quis vê-la, senti-la. Alguns não aguentam esperar e partem para os mais diversos destinos; algumas viagens são curtas, outras têm passagem apenas de ida, gratuita.

O menino nordestino acostumara-se a esperar, no verão, durante suas férias, as trovoadas. Era um espetáculo. Chuvas fortes, ventos ruidosos, o brado dos trovões e relâmpagos a iluminar, por um segundo, a abóbada celeste. Com as luzes apagadas, ou pela queda da rede elétrica, ou por simples convenção familiar, ele olhava, da janela do apartamento, para fora e via o desenrolar daquela peça, cujo palco era a rua e a água que batia contra o chão, árvores e construções a artista. Alheio aos perigos das tempestades e ao inexorável sofrimento de quem é vítima de uma casa alagada ou da perda de um ente querido, ele maravilhava-se com a representação do poder da natureza. Não sabia explicar por que achava tão bela e magnífica a mesma cena que a outrem causava espanto, ou que, ao menos, impusesse respeito. Sorria ao passo que rezavam. Queria a prolongação do espetáculo do qual pediam o cessar. Criança, coitado. Não entendia que essa mesma chuva que ele admirava causava estragos. Apenas gostava de vê-la cair, fazer poças e escorrer pelo pequeno declive rente ao meio-fio das calçadas.

Agora crescido, o menino não podia deixar de se impressionar com o cair das gotas d'água. O céu amanhecera totalmente nublado, cinza. Um prenúncio do que estava por vir. Então, choveu. Choveu naquela manhã de quinta-feira. Choveu como há muito tempo não se via, como ele não via. Não que se tratasse de seca. É certo que gotas d'água, durante esse período, já tinham se chocado contra esse chão castigado, de onde brotam, ambas verdes, plantas e a esperança. Mas acontece que há chuvas e chuvas. Eram as trovoadas.

Após um longo período sem o êxtase por admirar esse fenômeno, ainda sentia todas as emoções da mesma forma, como se tivesse sido algo constante em sua vida. Nem mesmo os momentos duros do início da adolescência foram capazes de tirar-lhe da memória as boas lembranças e o fascínio pela chuva. Esses permaneceram inatingíveis ao isolamento do menino, à depressão e ao sofrimento. Resistiram às noites insones e aos dias amargos. Não sucumbiram perante à vontade de sumir no mundo, até mesmo, do mundo. Permaneceram guardadas, intactas, algures onde o menino ainda sentia o gosto pela vida.

E, como o verde do sertão, que resplandece e traz de volta, ao sinal da primeira garoa, a exuberância à vegetação, as recordações conservadas do menino vieram à tona, trazendo a fecilidade que, antes, parecia ter-lhe virado as costas. Quedou-se alegre, vivo. E lembrou-se da infância, das suas traquinagens, surras, diversões e, é claro, das noites de tempestade, da água a bater no chão e correr pelas ruas. Então, veio a memória de alguns episódios especiais. Não podia deixar de lembrar da avó, cujos cabelos em muito se assemelhavam à imagem do céu nuvioso. A avó tão querida, que lhe fazia todos os mimos e atendia-lhe todas as vontades; a avó que lhe fazia suco de manga para comer com biscoitinhos e cocadas; a avó que trazia quantos cobertores fossem necessários para acabar com o frio; a avó que ele aprendeu a amar e respeitar mais do que qualquer outra coisa no mundo. Também a mãe estava presente nos pensamentos. Apesar de dura, gostava dele. Era um sentimento recíproco. Eram incapazes de dizer "eu te amo" um ao outro, mas em seus corações esse sentimento crescia, sem extravazar, acumulando-se. Sem dúvidas, o maior amor não declarado existente na Terra. O pai, ah, o pai... ninguém no mundo é capaz de duvidar do seu carinho pelo filho. E o menino o sabia. Justamente por isso, que não admitia que falassem mal dele, mesmo por brincadeira. Nessas ocasiões, a raiva do garoto elevava-se tão vistosamente que todos percebiam, e faziam questão de redimir-se nas infelizes palavras ditas. O menino adorava o pai, não somente pelas tardes maravilhosas que ele lhe proporcionava no parque, na piscina, nos jardins da praça, com direito a sorvete escondido da mãe - "Maluco! O menino tem a garganta frágil!" - e passeios de bicicleta, mas, principalmente, porque ele era quem estava presente na hora de dormir, a contar estórias que toda criança gosta de ouvir e conduzi-lo ao sono tão tranqüilamente. Coisas de pai.

Faziam parte das rememorações a escola, os amigos, os primos. Também aqueles conhecidos com quem nunca fora com a cara, apesar dos insistentes afagos e beijos que recebia deles; a vendedora de picolé, que ia de casa em casa com sua bicicleta verde, em cuja garupa carregava a caixa de isopor colorida com os picolés dentro; o senhor da banca do jornal; a dona da casa rosa da esquina; d. Rosinha, a cativante vendedora de doces que se transformou numa de suas melhores amigas. Como não resgatar da mente as aulas da 1ª série, e com elas as professoras, porteiros, secretárias e a dona da lanchonete da esquina, onde comprava fiado? De alguma forma, todas essas pessoas fizeram parte de sua vida, ora como meros coadjuvantes ou companheiros de palco, na pequena peça de sua vida. Esse palco gigantesco, alternado conforme a situação. Como não reviver as brincadeiras de escola, o pé torcido na gangorra, as fotos vestido de índio no carrosel, as trilhas feitas pelos arredores da cidade com os vizinhos da frente, o dia em que quase se afogou na piscina, ainda sem saber nadar? Tudo isso, exatamente tudo, o enchia de sensações, as mais diversas sensações, através da qual sabia definir precisamente o momento a que ela se referia.

Mas a chuva não durou muito tempo, e ainda restava muito para ser revivido. Certamente não passou por todos os momentos por que queria passar. Ficou na vontade. Só lhe restou esperar por outra chuva para, só aí, poder lembrar, recordar, sentir, gostar, amar novamente. O problema é que, já se sabe, no Sertão, a chuva nunca avisa quando vai voltar. Tampouco, pode-se prever. E o menino terá que esperar, esperar, esperar. Ou, quem sabe, partir.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Use óculos


Não raro nos pegamos a observar com aquele olhar profundo para incautos sujeitos que andam distraidamente na calçada, ou que estão na fila do banco, completamente inocentes. Eles não imaginam que, a poucos metros de si, alguém pode estar a traçar minuciosamente seu perfil psicológico, lição básica do manual “A arte de bisbilhotar”.

Nesse tipo de construção da imagem alheia, os óculos são um item crucial na determinação das características, conferindo um certo ar de intelectualidade a quem os usa. Tanto acredito nessa afirmativa que me rendi ao fenômeno da estereotipagem ao comprar meus novos óculos. A intenção foi substituir a armação antiga, leve, fina e mais arrojada, por uma mais cheia, clássica, bem ao estilo escritor, cuja aparência me colocaria mais de acordo com o propósito da literatura.

Certamente Drummond não seria reconhecido pelo seu talento se não usasse óculos. Também João Ubaldo Ribeiro e Manuel Bandeira. Benditos são esses óculos que servem de auxílio à visão, verdadeiros olhos, e que também colaboram com a imagem de cult, genuínos passaportes para o sucesso artístico.

Quer ser ouvido? Use óculos. Suas palavras irão soar como conselhos de um sábio. Quer ser referência? Usé óculos. Sua figura se valoriza com eles em sua cara. Quer ser jornalista? Use óculos. Suas matérias estarão na capa de jornal. Quer ser escritor? Use óculos. Você irá entrar para a Academia Brasileira de Letras. Quer bancar o inteligente sem saber patavina? Use óculos. É um verdadeiro fato alquímico; do cobre ao ouro, da ignorância à sabedoria.