segunda-feira, 30 de junho de 2008

E agora, José?

José acordou às 5 da manhã, ou não. Estava de pé, executando aquele ritual antes de sair para a faculdade, mas talvez ainda dormisse. Sim, porque fora dormir já era mais de meia-noite, fato que se repetiu pela quinta vez consecutiva na semana, ou seja, de segunda a sexta perdendo suas noites de sono. Levando em conta que todas as suas semanas desde que começou a estudar foram assim, ele já poderia estar acostumado. E sim, a rotina o acostumou a: fazer a cama, banho, três biscoitos e café, dentes escovados, conferir caderno e classificadores e outras manias mais que possuía- coitado, tinha TOC - necessariamente nessa ordem . Já fazia tudo isso sem se dar conta, pois essas atividades já eram reguladas pelo seu sistema nervoso autônomo. Faltando uns 15 minutos para as 6 horas, quando ele descia e o porteiro do prédio lhe dava bom-dia, ele acordava de fato. Aí vinha a amnésia... "será que tá tudo aqui? Fechei a casa direito? Comi o que mesmo?".

Assim era José. Não podia ter tudo ao mesmo tempo. Ora a consciência, ora a memória. Quando esta finalmente resolvia dar o ar de sua graça, vinha a preocupação. Achava que estava tendo problemas com a memória de curto-prazo, aquela que o professor havia comentado nas aulas de sistema límbico. Coitado do José, dessa vez aperreado com seu hipocampo. Por que foste estudar neuroanatomia, José? Então ele ia rumo ao ponto de ônibus. Qual deles? A vida de José não era fácil. Tinha que refletir, ponderar, avaliar, calcular e tomar uma decisão rápido. Ou o ponto da loja de departamento, que era mais perto mas só havia uma opção ou o ponto da padaria que era um pouco mais distante mas havia, no mínimo, duas opções. Também, o trajeto do ônibus do primeiro ponto era curto, cerca de 25 ou 30 minutos, mas era superlotado enquanto que os ônibus do ponto da padaria levavam em média 40 minutos para chegar ao destino de José, mas ele sempre ia sentado e confortável pois subia no início de linha. Ultimamente, José tinha preferido ficar com o ponto da padaria, por motivos vários.

E realmente José não era dos mais sortudos. Naquele dia, justo naquele dia, em que ele não podia se atrasar, o destino pareceu conspirar, mais do que o de costume, contra o pobre estudante. Em cada ponto, subiam dez e descia um. E com isso a viagem demorava. Cada parada daquela significa 1 minuto perdido, calculava ele. De quebra o ônibus enchia de pessoas. Era como se toda a população de Salvador resolvesse tomar o Campo Grande R1, via Cardeal da Silva. Apesar da demora, José, otimista, sorria aliviado como quem pensasse "pior não pode ficar". Doce ilusão. À medida que via subir, pela porta da frente, aquela camisa xadrez vermelha sua felicidade se esvaecia. Era seu professor de estatística, idoso, que precisava de um lugar para sentar. José era educado, e mesmo que não o fosse, como evitar ceder seu assento? O tal professor tinha ido em sua direção, como quem exigisse o gesto de respeito para com os mais velhos. E ele se levantou, e lembrou que não ia com a cara do velho. Não ia bancar o cordial e conversar com ele. Puxou seu mp3 do bolso e pôs no ouvido - e é ouvido mesmo, pois só funcionava um dos fones. Mesmo assim José ia recuperando a alegria por estar prestes a viajar ao som de algum rock alternativo, mas a alegria não veio: o aparelho estava descarregado. Deixou o fone lá, mesmo sem música alguma. Pelo menos não seria mais incomodado.

E quem conhece Salvador sabe como é irritante aquele engarrafamento do Rio Vermelho. Não faço referência a algum em especial, porque qualquer ponto do bairro é um tormento para os motoristas. E naquele dia, José não havia de escapar de ficar preso em uma daquelas ruas do velho bairro boêmio. Ele não quis nem olhar as horas. Apenas abaixou a cabeça e fechou os olhos, à espera do sacolejo de um ônibus em movimento, o mesmo sacolejo de que tanto reclamava em outros momentos. Vê, José? Não existe certo nem errado, somente circunstâncias; tudo é relativo e nunca diga nunca.

Felizmente, muitos minutos depois e poucos metros a mais, José conseguiu sentar. Também pudera! Mal a senhora tinha acabado de se levantar ele já estava colocando suas pernas por trás dela, garantindo o lugar. E, sentado, foi ensaiando sua parte no seminário sobre psicanálise que apresentaria mais tarde. A concentração foi tamanha que quando percebeu já estava perto da faculdade. E ele enfrentaria outra odisséia. Trombadas, bundadas, braçadas e tudo o mais a que tinha direito para conseguir atravessar aquela aparentemente intransponível massa humana até a porta do ônibus. Mesmo corpulento e desajeitado, José conseguiu saltar a tempo, antes do motorista seguir caminho.

E lá ia José, descendo a estrada de São Lázaro. Sua recusa em saber as horas lá no ônibus o fez desorientado àquele instante. Não sabia o horário nem fazia idéia, apesar de ter um bom "relógio interno", como se gabava. Apressou-se o sujeito descente. Viu que estava atrasado 10 minutos e ainda havia uns 600 metros a percorrer. Tinha que chegar. Na verdade, já deveria estar lá. Correu então o José. E como correu. Estava cada vez mais perto da faculdade. Como não estava acostumado aos exercícios físicos e trabalhava dentro dos limites dos 90 quilos distribuídos em pouco mais de 1 metro e 60 de altura, foi desacelerando enquanto seu coração aumentava suas batidas. Nessa horas em que o coração bate forte todos pensam que vão ter um infarto. Com José não foi diferente. Sedentário, avô cardíaco, fortes indícios. Felizmente não confirmou sua suspeita. Foi aí que José pôs os pés na faculdade e sentiu no peito o alívio de chegar, e em seguida cair, vítima de uma bala perdida de um tiroteio entre traficantes do Calabar e a polícia militar. Porque você é duro, José, mas você morre.