quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Reveillon à la Riachon

Não tem nada mais pragmático para mim do que fim de ano. Natal na casa da avó, a certeza da incerteza de não saber onde passar o reveillon, e, no final, o mesmo brindar de champagne chez moi.

Sou obrigado a digerir junto ao que quer que se sirva – o que me lembra a famosa expressão
qu'est ce que c'est e derivados – minha realidade provinciana com toques gauleses. Aliás, dizer toque é um eufemismo, porque na verdade acontece de a atmosfora dos últimos dias de dezembro ganhar ares franceses. Ou respiro ou morro.

A disparidade, mais evidente quando paro para pensar, chega a ser provocativa quando tio Philippe está por perto. Não bastasse ser francês, o sotaque dele, como o de todo patrício seu, permanece o mesmo ainda que com 20 anos de Brasil.

Bonne année pra cá,
bonne année pra lá. Abraços remetem ao liberte, egalité, fraternité. Os brindes e seu mote tradicional soam como salut. Se se bebe enquanto o ano-novo não chega, é com vinho – de onde vêm os melhores? A ceia é um prazer cuja excelência do preparo pertence ao chef cuisinier.
Alors, espero que essa avalanche – que já foi um galicismo – não me soterre e um dia eu esteja à Paris pour le reveillon.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

o despertar de uma mulher

La Magie Noire, Magritte

o despertar de uma mulher
é uma melodia serena
feito um balanço no parque
lá e cá, deslizando no ar
um movimento leve e paciente
cadenciado, contra o qual insurgem
lapsos de descompasso

não importam as intermitências
o despertar de uma mulher é sutil e elegante
é uma flor com hora certa para desabrochar

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Poemação III

La Chambre d'Écoute, Magritte

Propuseram-me metáforas várias para o poema:
o poema seria a luz do sol, que chega sem pedir licença
ou uma caixa onde podemos guardar e resgatar sentimentos
ou ainda uma garrafa lançada ao mar, mensageira nossa para alguém;
também seria o poema uma espécie em extinção, eu lá sei por quê
e o poema poderia ser uma janela do último andar de onde tudo se pode ver.

Porém, o poema permanece uma maçã,
servindo ao homem de acordo com a sua vontade.
Aliás, comê-la ou vê-la despencar do pé?



sábado, 5 de dezembro de 2009

a lógica de um pedido

Summer Evening, Hopper

tempo é dinheiro
tu me disseste eu era um vagabundo
vagabundos têm muito tempo
logo, tenho muito dinheiro
casa comigo?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Brancura II

Metamorphosis, Vladimir Kush

Aonde nossos pensamentos nos levam
senão à escalada de uma montanha?
Quanto mais o exercício de idéias, mais alto vamos.
Se acontecer de ao topo estarmos,
é porque juntos pensamos.
Se o pensar não for plural, te amo.
Eis um obstáculo...

É dito só podermos sermos felizes na ausência de razão
Não pensemos, então.
Porque se o fazemos, recusamos o sentimento.

Eu bem que não achava a montanha o bastante.
Amemos, pois e apenas, e alçaremos voo num lindo balão,
tão branco e elevado quanto nuvens,
com as quais nos fundiremos,
as quais nunca mais confundiremos
com um modesto tufo de algodão.



Leia também o poema Brancura.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

nunca me dê flores, meu bem

Coin de jardin à Montgeron, Monet

nunca me dê flores, meu bem
já demais as tenho
ademais, far-te-á enciumado
elas me lembram todos que por minha vida passaram
e tu sabes, nunca fui só tua

querias-me donzela
lamento, não pude sê-la
ganhaste-me cheia de máculas
porém o amor é redentor, tu sabias
cultivaste-me assim mesmo
como fez o jardineiro
que a ti vendeu essas flores

mas repito, meu bem, nunca me dê flores
deixa-as no jardim
como não fez o jardineiro
que a ti e a todos que te imitam o gesto as vendeu
deixa-as perfazerem sua biografia
brotar, fertilizar e secar

não é demais dizer
nunca me dê flores, meu bem
já demais as tenho
ademais, hoje somos as flores, o jardim e eu uma coisa só
só te peço que não sejas meu jardineiro
pois não sou mais tua nem de ninguém
e assim serei para sempre virgem

sábado, 21 de novembro de 2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

See that his grave is kept clean

Capa do álbum One Kind Favor, BB King

BB King mostrando que aos 84 anos ainda anda fazendo blues de qualidade, e que, principalmente, his grave's kept clean, para a felicidade da boa música.

See that my grave is kept clean

Well, there's one kind favor I'll ask of you.
One kind favor I'lI ask of you.
Oh, there's one kind favor I'll ask of you
See that my grave is kept clean.

There's two white horses in the line
Two white horses in a line.
Two white horses in a line
Gonna take me to my burying ground.

Well, my heart stop beating, my hands got cold
When my heart stop beating and my hands are cold
When my heart stop beating and my hands are cold
I'll believe that's what the Bible told

Did you hear a coffin sound
Did you hear a coffin sound
Did you ever hear a coffin sound
Then you know that the poor boy's in the ground.

Dig my grave with a silver spade
Will you dig my grave with a silver spade?
Dig my grave with a silver spade
Let me down the golden chain.

Have you heard a church bell toll
Ever hear a church bell toll?
Did you ever hear a church bell toll
Then you know that the poor boy's dead and gone.

(I feel so good..)

One kind favor I'll ask of you
One kind favor I'll ask of you
It's one kind favor I'll ask of you
Please see that my grave is kept clean.

domingo, 15 de novembro de 2009

Minimalismo

Red Painting, Ad Reinhardt

Somatizou
A gravidez era psicológica, mas nasceram dois guris saudáveis.

Necrofilia
O corpo jazia. Os libidinosos saprófagos comiam-no despudoradamente.

Gastronomia aplicada IV
A vingança não seria mais um prato comido frio. Assaria seu inimigo.

sábado, 14 de novembro de 2009

nu mei du caminhu

Caipira Picando Fumo, Almeida Júnior

No mei do caminhu tinha ua cancela
tinha ua cancela no mei du caminhu
tinha ua cancela
no mei du caminhu tinha ua cancela

Nunca vô mesquecê dess'acontecimentu
na vida di meuzói tãu castigadu.
Nunca vô mesquecê qui no mei do caminhu
tinha ua cancela
tinha ua cancela no mei du caminhu
no mei du caminhu tinha ua cancela


Se Drummond, não um itabirano, mas um nordestino do interior da Bahia, "triste, orgulhoso: de areia, pedra e secura."

terça-feira, 10 de novembro de 2009

guia para entrevista em talk show

Merzbild Rossfett, Kurt Schwitters

― então, quantos filhos?
― quatro.
― quantos quartos?
― três, o meu, o das crianças e o da visita.
― mulher?
― tem que ter peito.
― peito?
― não malho.
― é vegetariano?
― sim, planto meus frangos.

― falar de vida pessoal agora. como foi morar fora do país?
― ótimo. o paquistão é um país bonito.
― não teve medo?
― sim.
― e a islândia?
― fantástica. eles servem cabeça de ovelha.
― e o idioma?
― lá também não tem mcdonald's.
― sério?
― íslenska er ekki auðveld.

― certo, um pouco de vida profissional...
― não tenho.
― como vive?
― vegeto. sou vegetariano.
― isso é uma crítica?
― não.

― rapidinhas.
― sexo, só com preliminares.
― ¬¬
― ...

― persona grata.
― bæ.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

sincretismo

ou Prece de um Sertanejo ao Orixá


Exumaré, Carybé

cabe um cheiro na garrafa vazia de água
cheia de cheiro do vazio
em que cabe o que cheira à agua
à água de cheiro

candomblé
aguaceiro

a planta do orixá
oxalá há de chover
e a planta molhar
oxalá, meu pai, oxalá
cá no mar tem Iemanjá
e não precisa de chuva
nem tem planta
nem molhar

oxalá
cheiro de chuva

mande a água, meu deus
sem nome nem maiúscula
sou anônimo nem grande
nem nunca vi o mar
e o cheiro de água
quem me dera, oxalá

cheiro de chuva
aguaceiro

oxumaré, meu deus
oxalá atenda
esse meu orixá
que me mande sua água de cheiro
seu cheiro de chuva
sua chuva de água
água de chuva, oxalá

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

sem título vi

Les Six Éléments, René Magritte

este será o sexto poema do mês
o sexto elemento de Magritte
o simulacro do já espectro éter
o além-horizonte
transcendência da essência
absoluto inominável

o que nem Platão conseguiu pensar
o que a razão humana, sequer, alcançar
quando o poeta é reticente

terça-feira, 20 de outubro de 2009

sem título v

L'Ange du Foyer ou le Triomphe du Surréalisme, Marx Ernst


este será o quinto poema do mês
a quintessência da poesia
de um mês na quinta colhendo lirismo e lírios
vendendo-os todas as quintas-feiras
nas feiras de quinta, qual a dita poesia
feita de lírios, não mais que de lírios

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Sem título IV

Friedrich Nietzsche, Edvard Munch

Qual a poesia que tem
uma latinha largada na rua?
.......A priori, nenhuma.
.......Pergunto, porém,
qual a poesia da mulher nua?

É pau, é pedra, é uma lata de cerveja
e não há um poeta que esteja
com ela em seus versos.
Quanta ironia:
o poeta está bêbado em sua cama
mas bebedeira é palavra feia
e eles estão ébrios, o são de vinho e amor,
escrevem, deitados no passado,
numa pieguice incabida no hoje.

Clássicos são livros de consulta.
Há os que os façam bíblias.
Se soubessem o que disse Nietzsche,
se ao menos suspeitassem,
se deus não estivesse morto,
se a verdade estivesse nos olhos da mãe,
seria escusado versejar o amor
como não existissem vicissitudes
e a essência jazesse em etéreos sonetos.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

poema de sete versos

L' Annonciation, Philippe de Champaigne

não há mal que perdure para sempre
disse-me um anjo aflito que veio à minha janela
quisesse talvez me consolar
mas presenteou-me com sua aflição
me outorgou assim sua condição
e daí descobri por que o amor acaba
e os anjos não têm sexo



A Bruno, com uma pequena inspiração drummondiana

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

a (in)certeza do poeta

The uncertainty of the Poet, Giorgio de Chirico

um dois três
há alguém entre nós
a matemática é cruel
por isso sou poeta

domingo, 4 de outubro de 2009

inexorável

A Woman in the Sun, Edward Hopper

hoje o entardecer é tela
arrebol em minha janela
uma moldura desgastada
não nega os anos vividos
cães vivazes me fazem inveja
e o sol se pondo é cabal

espero a noite para dormir
após o acalento matreiro
do crepúsculo que não volverá

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Um táxi na chuva

Taxi in the Rain, Anne Kullaf

Quisera eu ter tempo para admirar a chuva que cai. E não pense que eis uma redundância, pois há chuvas que desabam, há as que deslizam, as que borram o céu, as que não existem. A de hoje é um pouco de todas elas.

Segunda-feira, último dia do mês. Estou certo de que toda essa água vem para diluir e carregar para a terra e esgotos os infortúnios de agosto, época do desgosto. Com os maus agouros vai a espera duns graus a menos nos termômetros. Não me acostumo à ideia de um meio de ano quente. No interior é diferente. Lá a fina garoa é constante, seja ao amanhecer, ao passar do dia ou à boca da noite. Uma garoa que eu tanto aguardei desde o São João e que só deixou-se aparecer hoje.

O dia precisou amanhecer nublado, abrir-se ― uma brincadeira de mau gosto especialmente para mim ― e voltar a acinzentar-se à tardinha. A despeito da psicótica rixa das forças da natureza para comigo, a chuva veio. E, diferentemente de outras vezes, já se vão algumas horas desde que chegou nos céus daqui.

Quisera eu ter tempo para admirar a chuva, que cai, desaba, desliza, borra e não existe. São quase tantos tipos de chuva quanto as gotas que caem. Os motoristas nos carros, no entanto, não vêem a chuva passar, presos que são no trânsito vagaroso. Até entendo sua ânsia por chegar logo em casa depois de um dia cansativo. É sua opção enraivarem-se. Cada um elege os sentimentos que lhe convêm.

Assim também é meu direito zombar deles, por não aproveitarem um tempo de gozo pleno, em que nada é mais forte que a força da chuva. De dentro de um veículo, a intensidade da água no metal é quase um pêndulo hipnotizante, intenso e pesado barulho psicodélico, não cabendo aqui melhor descrição ― não se dorme, vigília não pode ser, tampouco sonho, é existir, talvez, no pequeno pedaço de céu que escorre no vidro embaçado.

O mundo real não se quer ver, nem a chuva lhe permite se oferecer às retinas. Faz um pouco de frio, mas não é sentido. Não faz sentido, aliás. Rima para cidade é calamidade, e o que é feio a água limpa. O vidro molhado seca, já é noite e todos chegam às suas residências molhadas.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Uma pedra chamada faculdade...


sábado, 5 de setembro de 2009

versos do ocaso

La nuit sans étoiles, Jean-Claude Rousseau

há esse senhor leitor
que folheia sem pudor
e a cada página perpassada
letras contam uma vida
perfeitamente contida
num livro sem muita cor

velhice é noite sem estrelas
são memórias foscas e
o fim de leitura

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O poeta na areia

Foto por Jéssica Brandão, em Correio da Bahia

Há vários caminhos para a boa ventura.
Um deles é certo, porém;
permiti-me apresentá-lo.
Repousa no refletir do sol na água
às cinco e quarenta e cinco da tarde
no porto da Barra.

Caminhai, baianos,
segui por ele, turistas.
Fixai o olhar no círculo,
lá ao fundo, luminoso.
Ide a ele que vem a vós, pais e irmãos,
todo santo dia, cá na baía de todos os santos,
estes que vos abençoam
a caminhada por sobre as águas.
Não é preciso milagre,
somente que observeis o tapete alaranjado
duelando com o azul costumeiro
(aliás, cores não brigam,
apenas entram em contraste)
e andeis pelo brilho.

As seis horas são esperadas.
Movei-vos pela estrada, portanto,
que os cavalos-marinhos já vêm
enrolar o tapete, ao que se põe
o sol, não no horizonte,
mas atrás da ilha de Itaparica,
ao som das palmas que batem
os bons viajantes na areia
cada vez mais fina, desgastada
de emoção por tantos crepúsculos.

sábado, 1 de agosto de 2009

Insônia

Um desassossego à noite me veio qual peça de arte.
Não me concentrava senão no balançar
da cortina ao vento, uma rubra pintura expressionista
em penumbra, cena fatídica de filme noir.
Desconfiei de contratempos em sol na bexiga,
minha mera gaita de foles desafinada.

Romance meu sem início nem fim,
somente acompanhado meio repentino,
a concepção sorrateira desse poema.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Dos bastidores

Escolher obras de arte para ilustrar os poemas não é tarefa fácil. Isso porque geralmente custa casar as duas expressões, unindo-das por algum elemento que compartilhem, além do que a própria pesquisa demanda já algum trabalho e tempo.

Na confecção da última postagem, entretanto, a dificuldade deu-se pelo amplo cardápio de pinturas que retratam, à primeira vista, a leitura. Encontrei um blogue muito bacana, o silêncio dos livros, onde há gravuras para todos os gostos, todas como essência o ato de ler.

Depois de muita dúvida, optei por utilizar um quadro do americano Edward Hopper, cuja arte muito me agrada.

Fica o recado: para quem gosta realmente de pinturas ou mantém certo interesse, como eu, vale a pena a visita n'o silêncio dos livros.

Paternidade

Excursion into philosophy, Edward Hopper

Adormeci
com um livro de poemas em mãos
e sonhei
que este só me seria um filho adotivo.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

correspondência

A Carta, Portinari

você sabe onde, algum triste dia do segundo ano fora de casa

saudades de mim, minha leide?
não a matemos
é um sentimento assim
danado, sim
mas não impede que gostemos
e que a ausência do outro,
esse outro querido,
em doce dor, leve ardor
desfrutemos.

fico-me por aqui,
saudades suas,
do seu.

domingo, 12 de julho de 2009

¿Y tú qué has hecho?

En el tronco de un árbol una niña
grabó su nombre enchida de placer.
Y el árbol conmovido allá en su seno
a la niña una flor dejó caer.

Yo soy el árbol conmovido y triste
tu eres la niña que mi tronco hirió.
Yo guardo siempre tu querido nombre
y tú , ¿que has hecho de mi pobre flor?


Letra da música ¿Y tú qué has hecho?, do álbum Buena Vista Social Club.

sábado, 4 de julho de 2009

Testamento

Eu quero morrer louco
são nem um pouco
doido de pedra
demente, decadente
sem mente, sim
completamente doente.

Eu quero morrer assim
para não fechar meus olhos
ciente de que é o fim.

sábado, 20 de junho de 2009

Crônica de uma cidade adormecida

É quando a cidade dorme que consigo pensar. Quando acordada, é o capitão-do-mato que nos mantém na linha conforme a vontade do senhor; não tolera atraso, desculpas ou ineficiência, e está atenta, regendo uma vida compulsória.

Nasce o dia e acordamos, não porque o sono já nos bastou, mas pelas obrigações diárias. Desempenhamos nossas funções e esquecemos de todo o resto. Eis o viver. Para nos tirar da rotina, nada como uma insônia inesperada. Levanto, vou à janela, tomo emprestado um pouco de ar, agora menos carregado de poluição, e sento em frente à TV - monótona programação aberta. Vou à cozinha, bebo um suco e volto a deitar. Já não sei se é insônia ou calor. Dessa vez um leite quente com chocolate, enquanto olho uns blogues sem sal. Por fim, outra passada na janela. A avenida lá na frente, vazia. Não é a mesma das horas de sol. Um carro ou outro percorre o asfalto cansado, insone como eu. Tento advinhar para onde vai uma hora dessas. Talvez já esteja retornando. De todo modo, ambas as alternativas não me dizem respeito.

Olho a passarela em que fui assaltado há alguns dias. Agora parece ser um lugar seguro. Mas só parece. Escondido em algum lugar que eu, nem a possível vítima, possamos ver deve estar o bandido, como o que levou meu celular. Ofício de assaltante - hora extra ociosa. E bandido lá sabe o que é ócio?

Os pontos de ônibus estão desertos, diferentes dos formigueiros que são durante o dia. Não é o caso dos que vejo, mas algum em outro canto da cidade pode servir de abrigo para um mendigo. Abrigo contra o quê? Nem contra os perigos da madrugada, nem contra o frio. Talvez contra a chuva, porém não chove hoje.

Os prédios vizinhos dormem. Sequer uma janela acesa, o que me faz pensar que sou o único acordado da cidade. Isso é falso. Há os motoristas que passam maltratando o asfalto, o assaltante à espreita não se sabe onde e o mendigo que dorme por aí. E há também meu companheiro de apartamento que se levantou agora. Foram os meus pensamentos? Ele passa, mudo com se ainda dormisse, e vai à cozinha, caminho certo. Também não puxo papo. Esse sou eu, também calado, não dado a conversas desnecessárias. É por isso que respeito o silêncio alheio. Sei o quanto é importante. E aí me dou conta de que pode ter sido a TV dele ligada que tenha colaborado com minha insônia. A princípio sinto raiva, que se esvai. Não fosse ele, ainda que involuntariamente, eu não estaria aqui, pensando, vendo a cidade adormecida. Os capitães-do-mato também dormem. E enquanto o fazem eu sou livre. Livre para ver, sentir, pensar, perceber cada detalhe de uma paisagem tão costumeira porém surpreendente.

O sol se aproxima. Eu posso vê-lo, não em seus primeiros raios, mas nas luzes que começam a iluminar cômodos nos prédios ao lado, na fumaça da padaria que começa a subir, no caminhão de lixo e seu barulho característico que vão ao longe. É quando ouço os capitães vestirem suas roupas e empunharem suas armas. Daqui a pouco eles estarão atentos, colocando-nos nos eixos. Tudo bem. Hoje eu tive minha pequena alforria.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

segunda-feira, 25 de maio de 2009

depressão

El guitarrista viejo, Pablo Picasso

é teimosa, insistente
é de mim qual minha sombra
é de ir e vir, sol poente

penetra na festa
penetra é
me ata, me prende, me infesta

pálida figura atrás da cortina
ator maquiado de alva timidez
medroso da janela, da vida lá fora

o muro não esconde minha casa
a máscara não oculta a verdade
meu rosto não disfarça a tristeza

eu me sofro, não o quero
não sorrio, sou rio
de caudaloso percurso

o vício em substâncias mágicas
promessas de alívio não tão fantásticas
no peito a dor, fisgadas esporádicas

o jornal folheado
a televisão ligada
a comida estragada

água limpa é vaga lembrança
sensação sucumbida ao suor grudento
é o que desejo, é minha esperança

a roupa precisa ser trocada
a porta está trancada
há passos na sacada

renego a todos, só não à solidão
que me acompanha na sombria
hora de dormir

vazio e fragilidade
eis-me em dois substantivos
tão abstratos quanto a egoísta existência

depressão maldita
maldita
depressão

domingo, 17 de maio de 2009

Sem título II

Le Faux Miroir, Magritte

Seus olhos infinitos
a mirar-me por todo o sempre;
e eu a tê-los por todo o nunca,
e a esperança intermitente
de, um dia qualquer,
eis o sumiço do tempo.

Assim seremos
somente eu e seus olhos
infinitamente.


sábado, 16 de maio de 2009

sem título

estrada

feita de terra
pedregosa, amarela

cuja subida me revela
o caminho que se encerra
ao encontro da pesada cancela

interdita, talhada em madeira cor-de-canela

lembro-me da partida singela
idéia do sonhador que erra
ingênuo, sem cautela

um gênio sem goela
que já não berra

cilada

sábado, 2 de maio de 2009

poiesis

Белое на белом, Казими́р Севери́нович Мале́вич
Branco no branco, Kazimir Maliévitch

poesia é mais que rimar
meia-dúzia de vocábulos,
não é um mero brincar
com as palavras,
tampouco expressãodos sentimentos.

poesia é quando você olha
para o papel e não consegue
deixá-lo em branco.





sexta-feira, 1 de maio de 2009

O último voo do Senna

Uma das mais remotas lembranças que tenho é daquele primeiro de maio de 1994, GP de San Marino de Fórmula 1, eu de manhã parado em frente à TV e olhando sem entender bem o que se passava entre uma narração desesperada do locutor e aquela agitação de pessoas nas imagens.

Dali a horas, um herói morto, uma família em prantos, um mundo chocado e uma criança emocionada. Irônico, mas Senna nasceu para mim, exatamente no momento em que partia para sempre. Desde então seu nome me orgulha e comove. Sempre que vejo aquele fórmula-1 recebendo a bandeirada ou ouço sua música (que embora outros tomem emprestado, será sempre sua), é um choro que sobe à garganta.

Eu não acompanhei sua carreira. Não vi suas corridas, suas ultrapassagens fantásticas, os pódios brilhantes nem as vitórias históricas. Não sei por que Senna é um herói, um mito. Sobretudo não sei por que sua lembrança me entristece e ao mesmo tempo enche de brio.

Só sei que essa sensação talvez seja a mesma experimentada por ele nos segundos finais entre a saída da pista e o muro carrasco: a convergência da dolorosa certeza da morte e orgulho de ter sido em vida um talento incontestável, uma lenda do esporte.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Putas Assassinas, de Roberto Bolaño


A despeito do que o leitor possa imaginar antes de iniciar a leitura do artigo, Putas Assassinas não é um livro erótico escrito pelo comediante mexicano criador do Chaves. Trata-se aqui de uma singular literatura, escrita por um chileno exilado após o golpe de Pinochet, cujo nome também é (no) singular: Roberto Bolaño. Não é só um s ao fim do nome, contudo, que diferencia Bolaño de seu quase xará mais famoso. Enquanto o trabalho do mexicano tem sido exibido, com relativo sucesso, por décadas na TV brasileira, só agora o chileno se tem tornado um conhecido do leitor tupiniquim.

Putas assassinas é uma ficção auto-biográfica. Ou seria uma auto-biografia ficcional? O fato é que Bolaño parece brincar com o leitor, dando-lhe o míster de escolher o que, dentro das narrativas, é reminiscência e o que é invenção. De todo modo, a impressão que se tem é que os 13 contos que compõem o livro são sua vida de cidadão do mundo - nascido no Chile, viajado por México, França e radicado por fim na Espanha - fragmentada e contada como o que foi ou poderia ter sido. Não há dúvidas, portanto, de que a experiência pessoal foi a base para sua escrita fluida e cosmopolita. É dessa forma que os enredos de Putas assassinas revelam uma história de vida rica e intensa, mesmo para quem se deparou com a morte precoce aos 50 anos.

Em suas narrativas, Bolaño é o fotógrafo homossexual que presencia rituais macabros na Índia. É também o professor que não queria dirigir "uma oficina de literatura em nenhum povoado perdido do norte do México". É B (Bolaño?), um indivíduo recém-chegado a Barcelona que "assiste a uma festa de chilenos exilados na Europa", e é ele próprio na narrativa surreal que encerra o livro.

Toda a obra, ou boa parte dela, tem uma atmosfera nostálgica, em cujo ar encontram-se porções de conformismo e apatia diante de uma vida que, embora intensa, não significou êxito pleno. Isso porque Bolaño talvez tenha sido uma dessas pessoas, não sem razão, amargas e taciturnas, para quem o ato de escrever era catártico. As referências a poetas e à ditadura chilena (e seus subjacentes comentários ácidos) são temas constantes. Estes parecem ser duas das grandes decepções da sua vida, tendo o próprio afirmado que considerava-se poeta em essência e passou a escrever prosa apenas para conseguir legar algum dinheiro aos filhos. Também, intitulava-se um latino-americano, aparentando ter renegado o Chile enquanto pátria, de modo que suas alusões a tal país eram carregadas de ressentimentos.

Outras características, no entanto, podem ser assinaladas nesse excelente livro, que se desloca num fio cujas extremidades são o vulgar e o fantástico. Dado que Bolaño era um escritor que transcendia classificações, seu trabalho em Putas assassinas tem ares muito peculiares, resultado do encontro de uma redação cética, do ponto de vista existencial, e humor invejavelmente perspicaz. Dois contos merecem menção destacada: O retorno e Encontro com Enrique Lihn, que apontam passos pelo realismo mágico. O primeiro é de uma agudeza ímpar e repleto de passagens marcantes, das quais:

"O costureiro, para minha surpresa, gozou se esfregando na minha coxa. Nesse momento eu gostaria de ter fechado os olhos, mas não consegui. Experimentei sensações antagônicas: nojo pelo que via, agradecimento por não ter sido sodomizado, surpresa por Villeneuve ser quem era, raiva dos maqueiros por terem vendido ou alugado meu corpo e até vaidade por ser involuntariamente objeto de desejo de um dos homens mais famosos da França."

O segundo revela um escritor dotado de técnica, por trás da escrita econômica e objetiva. Bolaño aqui é o próprio protagonista, que vai, em sonho, ao encontro do seu contemporâneo e então falecido Enrique Lihn, uma narrativa de único parágrafo e bom exemplo do fluxo de consciência.

Putas assassinas é, além de uma viagem a paisagens estéreis ou tropicais do México, a um Chile imaginário, uma França não tão grandiosa e uma Barcelona "de senso comum", uma jornada pelo psicológico de um dos maiores escritores latinos dos últimos tempos.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

good bye, blue sky

Il suicidio di Lucrezia, Guido Reni

ontem me perguntaram
se eu não tinha opinião
se eu não fumava
se eu não gostava de futebol
se eu não apostava na loteria
se eu não ia à praia
se eu não traía minha mulher
se eu nunca havia enchido a cara
se eu nunca fiz um ménage
se eu nunca briguei na rua

ah, aqueles bastardos
tão resolutos e persuasivos
que esse poema é minha carta de suicídio


segunda-feira, 13 de abril de 2009

terça-feira, 17 de março de 2009

Cor de rosa


o amor tem essa cor
de rosa
qual buquê das tais
sem a quais
não há amor
pois sem cor
o coração se parte
e resta ação

cor de lápis favorita
que me desenha
aquelas histórias
na vontade
um eterno tentar
que ao apagar
das luzes
ganha cor
de rosa
a colorir os atos
do coração

é como o vermelho
porém mais pálido
porque a cor é pouca
para tanta demanda
de amor


Inspirado na música Pink, da banda Aerosmith. Na imagem, a clássica Pantera Cor de Rosa (the Pink Panther)

domingo, 15 de março de 2009

Conjetura


Voltava para casa, tarde à noite. Seguia apressado pelo leito da rua de paralelepípedos irregulares. À esquina esquerda da via, encostado no muro, havia uma figura cuja face estava escondida na insistente penumbra dos prédios e árvores. Teve medo. Caminhou até o lado oposto. O homem da esquina gesticulou e chamou por ele, “ei”. Pressa e medo. Finalmente, dobrou a esquina e seguiu.

O sujeito da calçada não pode avisar que por onde o outro tinha ido, antes dele, também tinha seguido uma gangue.

.

sábado, 7 de março de 2009

Rime

moi je suis
un épi de maïs
jaune et petit
êtes-vous ici?
exactement à Paris
il me dit
tu es jaune et petit
ah, je ris
je suis un épi de maïs
pour la attention, merci


Porque é bonito rimar em francês



segunda-feira, 2 de março de 2009

Gotas

Lavadeiras, Cândido Portinari

feito nuvens de verão
estendidas no varal
descansam roupas brancas
donde pingam
lentamente
a denúncia do árduo labor
de lavar a sujeira, o suor
e a dor.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

U

Portret van Dr. Gachet, Vincent van Gogh

se eu cair em depressão
que lá me deixem
que de lá não saio
que assim há uma certeza
que não voltarei ao mundo
que sem quê me adoece.


terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Janelas

Night Windows, Edward Hopper

Todos os dias
da janela de minha casa
janelas escuras
apagadas

Já é tarde
é noite, é madrugada
e hoje janelas claras
acesas
do outro lado da rua

Lá dentro
algo aconteceu
Pessoas preocupadas
deixam suas janelas
iluminadas
Alguns andam
em círculos, em vão
vão de lado a outro
O outro está sentado
indignado
"como pode?"
Pode chorar
é válido
é o que faz alguém
no canto da sala
Agora só resta
aquele que reza
e pede conforto
ou uma luz, que sai
pelas janelas
daquela casa.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Poemação II


Ceci n'est pas une pomme - René Magritte
Me admira o homem
com sua astúcia
fazer da maçã
objeto não de único objetivo.

A maçã é, pois, um subjeto
que alimenta
que ornamenta
ou que apenas apodrece no chão.


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Poemação

Nature-morte aux pommes et aux oranges - Paul Cézanne

O poema é uma maçã
que despenca da árvore,
ao sopro do vento, e
chega, seu único propósito,
ao chão.


sábado, 17 de janeiro de 2009

Transæ

Passada uma década, ela lá, sentada com o namorado. Seu corpo havia ganhado mais curvas e mais volume; meus olhos, mais volúpia. Seios cabíveis em minhas mãos despudoradas, fina cintura e pernas longas e ousadas vestidas num short de palmo e meio, convite ao sétimo pecado capital.

O namorado, um sujeito não muito bonito. No máximo um peitoral estufando uma ridícula camiseta rosa. Sua vantagem deveria ser o sexo: ou bem dotado ou bom deitado. E eu, com tais dádivas agraciado. Tê-la, apenas uma questão de oportunidade.

Esperei até que ela fosse ao banheiro, unissex como se previamente definido por Asmodeus. Copo no balcão, em delírios lascivos a segui.

Dentro da cabine, sua vasta pélvis encaixada em mim, de surpresa. Sem reação. Gostou. Minhas mãos nas coxas largas. Virou-se e arriscou apalpar-me. Descoberto o volume. Esboços de gozo no sorriso. Calças abaixo, pênis para cima. Mais que macias, mãos mágicas, fazendo crescer, inchar, enrijecer.

Não fosse o som da descarga ao lado, ela não teria sido espantada. Da minha mente.


terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Um quase soneto camoniano

Hóspede

Amá-la desprovido de querer
Por certo que não seja impossível;
Em mim esse sentir, de dor, passível
Que me toma sem sólido porquê.

Como o sol no romper de nosso dia
É esse amor que chegou sem uma licença
Recrutou-me soldade sem dispensa
Num embate em que estar não gostaria.

Prostrado ante uma vontade que não minha
De dedicar-lhe inteiro um coração
Esqueço a liberdade que eu tinha.

Sem humanidade, isento de razão
Sou, pois, criatura que caminha
Num eu, não meu, seu; só contradição.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Lapso

a razão é débil:

subjaz aos instintos atiçados
dilui-se no sangue fervente
exala no aroma dos corpos
perece ao pré-gozo
e retorna...
quando o prazer são ecos
pelo quarto








sábado, 3 de janeiro de 2009

(In)feliz Ano Novo


Para o Povo, o ano não poderia ter começado melhor: como magia, seu suado dinheirinho de contribuinte convertido em cores e formas no céu noturno.

Nunca fora acostumado a pensar a longo prazo, logo, perdido em votos de boas-festas, não lembraria do salário vindouro qual chuva no sertão, da fila para a matrícula dos sete filhos, do único doutor no hospital - urologista ainda por cima -, do policial cuja arma carrega bala solitária e dos preços de eterno movimento ascendente.

Taça de sidra na mão, o Povo não mensurava a realidade de cada maquinal "feliz ano novo" recebido, e retribuía, confiante num ano próximo com muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender.