sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pequeno apontamento sobre Arte

Aвтопортрет в двух измерениях, Казимир Малевич
Autoretrato em duas dimensões, Kazimir Malievitch

Ferreira Gullar, um dos maiores poetas e críticos de arte brasileiros, questiona: “tem a arte de seguir o espírito da época?”. Nesse sentido, ele chega à conclusão de que embora algumas vanguardas européias do início do século XX tenham buscado uma integração do fazer artístico às transformações sociais e econômicas da época, a exemplo do Futurismo e sua fixação na sociedade industrial, outras partiram de e em direção a uma situação completamente oposta: um contraste ou crítica direta, politicamente engajada, às características dessa sociedade nova que surgia – o exemplo do Surrealismo. Uma boa ilustração desse último caso encontra-se em Michael Löwy, a respeito da ligação entre Surrealismo e Marxismo.

A despeito desse debate do condicionamento da Arte à dinâmica social em que está inserida, seja de cunho convergente ou divergente, parece consensual que, embora nenhuma sociedade tenha existido sem produzi-la, e que a atual sociedade ocidental tenha visto um aumento no interesse do cidadão comum pela Arte, além de que também a ela se acoplou a filosofia mercantilista, massificando as produções artísticas, ainda persiste a ideologia da inutilidade da Arte.

Não raramente a Arte é apresentada em oposição ao utilitário; como elemento secundário da vida cotidiana afeita a manifestações pragmáticas. Não poucos são os artistas a categoricamente atentarem contra a sua utilidade. O caso mais famoso talvez seja o do escritor irlandês Oscar Wilde, que no prefácio de seu romance O Retrato de Dorian Gray afirma “toda arte é completamente inútil”. E embora muitas sejam as obras que advoguem em seu favor, ao discorrerem sobre a questão estética, muitos teóricos da Arte, acabam por acentuar essa dicotomia útil versus inútil.

Daí a relevância e insistência do questionamento, qual será o papel da Arte num mundo marcado pela tecnicidade?
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sábado, 27 de novembro de 2010

Gli occhi degli artisti

 La Gioconda (Monna Lisa), Leonardo da Vinci

Panofsky mostrou que só a mente racionalista da Renascença florentina poderia ter criado uma concepção homegênea, funcional e matemática do espaço figurativo, oposta à que se exprimiu na arte bizantina ou na gótica, onde as figuras se dispunham, no masaico ou no vitral, segundo razões simbólicas, sem qualquer cuidado de realismo anatômico.

Um fragmento do livro Reflexões sobre a Arte de Alfredo Bosi. Uma obra para introdução à história e filosofia da arte. Nela são discutidos alguns aspectos que perpassam a produção artística ao longo dos tempos, oferecendo uma visão cronológica de fatos e também discussão de alguns conceitos estéticos. Trago aqui uma inquietação minha nunca resolvida em definitivo, a da brusca mudança das técnicas de pintura que marcam o Renascimento. Me questiono: antes desse evento os homens eram desprovidos de capacidade cognitiva que lhes permitisse transpor para o papel a trimensionalidade ou essa seria uma categoria irrelevante na produção pictórica pré-renascentista? Haverá desenhos com profundidade e noção espacial análoga à real durante a Alta Idade Média ou ainda antes? Certamente questões que podem ser respondidas pela leitura de uma bibliografia razoável sobre História da Arte, mas no momento fico com a indagação: incapacidade ou desnecessidade? Acima Bosi apenas cita outro autor, mas me parece concordar com a posição de que faltava ao pintor medieval a habilidade, não a carência de razões. Sei não.
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Estudo sobre Experiência Estética

Olá, caros! Queria convidá-los a participar de um estudo que estou conduzindo sobre a percepção da arte, o que academicamente chama-se experiência estética. Para tal, basta acessar o link abaixo:

Em menos de 10 minutos é possível contribuir com a minha pesquisa, além de poder apreciar algumas obras de arte.

Muito grato,
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Mui

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Zapíski iz pódpol'ia

Портрет Достоевского, Васи́лий Григо́рьевич Перо́в
Dostoievski, Vassíli Grigorievitch Peróv 

Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.

E alguém há de discordar de Dostoievski? Essa é uma passagem do seu livro Memórias do Subsolo, (em russo: Записки из подполья, Zapíski iz pódpol'ia). É uma leitura um tanto densa, especialmente a primeira parte, em que o narrador dialoga com seu público imaginário. Embora muito da obra faça maior sentido numa Rússia do século XIX, o centro da sua escrita, a condição humana, o seu subterrâneo, não parece ter mudado de lá para cá. Não à toa, por seu conteúdo, essa é reconhecidamente a primeira obra existencialista.

domingo, 17 de outubro de 2010

Indefinível

 Current, Kush

Não sou apenas um punhado de energia criativa, mas uma pulsão, uma inquietação recorrente, invariável, desconcertante e incontrolável, endless, cíclica, crítica, broto, nasço, compartilho, divido, confundo, misturo, embaralho, como um quadro de Kush.
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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Aclarando preconceitos

 Marter der zehntausend Christen, Albrecht Dürer
 
Antes de colocá-lo de volta na estante, gostaria de compartilhar uma passagem d'O Livro das Drogas: Usos e abusos, desafios e preconceitos de Antonio Escohotado.

A primeira vez que entrei em contato com os escritos desse senhor foi no ano passado, enquanto aluno de uma disciplina na faculdade socioantropologia das drogas o que me inspirou a escrever um artigo sobre escritores e psicoativos. Algum tempo depois mas há algum tempo atrás, encontrei por acaso o referido livro num sebo virtual, comprei-o e só agora pude lê-lo. De início, sabia que não era um livro propriamente acadêmico, no entanto, não imaginei que chegasse ao ponto de estar mais para memórias.

Ainda que seja um livro crítico com relação à questão das drogas, numa abordagem que, conforme o próprio subtítulo avisa, vai em advocacia dessas substâncias demonizadas pela sociedade, fato é que o autor surpreende com as narrativas de suas peripécias ebriosas.

A passagem que quero dividir é esta que me fez rir e por um momento acreditar que estava lendo um romance ou texto fictício.

Tive ocasião de comprovar suas potência [do THC] há mais de uma década e meia, quandos dois amigos e eu ingerimos uma quantidade excessiva (pensando que não o fosse) e fomos visitar a pinacoteca de Munique. Passaram-se quase duas horas sem efeito algum, até que de repente começou a nos impregnar. O ar se povoou de pequenos seres em suspensão, como se estivéssemos dentro de grandes aquários, invisíveis até então, sulcados por um clarão de luz intermitente, enquanto os retratos e as paisagens não só emitiam o calor humano de pessoas vivas mas uma música adequada a seus tons de cor. Recordei imediatamente os comentários de Baudelaire e Gautier sobre transformações de formas em sons, enquanto uma progressiva imobilidade ia tomando conta de nossos corpos; a mim, por exemplo, era impossível tirar a mão de um bolso da jaqueta, e comprevei que meus amigas estavam em diferentes salas, compleatamente quietos, cada qual em frente a um quadro. Consegui chegar em uma sala com diversos Rubens (entre eles Cristo e Maria Madalena) e alguns Dürer, atônito ante as mudanças perceptivas, quando o tempo se deteve e também precisei me sentar. As pinturas deixaram de ser telas e se transformaram em janelas para diferentes paisagens, suavemente animadas de movimnentos, que transmitiam uma enormidade de sentidos. Passar de um a outro era percorrer universos complexos, uma inefável imersão em épocas e climas espirituais passados que de repente estavam ali, vividos nos mínimos detalhes, oferecidos como se oferece o dia a quem abre as janelas do quarto, com os sons, aromas e brisas do momento.

ESCOHOTADO, A. O Livro das Drogas: Usos e abusos, desafios e preconceitos. São Paulo: Dynamis Editorial, 1997.
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domingo, 3 de outubro de 2010

Ура, Товарищи!

Мир стоит на вулкане, Маяковский
(Mir stoit na vulkane), Maiakovski

Recentemente li A Ideologia Alemã de Marx e Engels, uma obra um tanto singular. Lançada postumamente, em 1932, e a cada edição sendo complementada com trechos faltantes. Ainda hoje, há páginas dos manuscritos que perdidas.

Na obra, dá para perceber a formação do materialismo histórico e dialético e a ideologia comunista; talvez, o embrião do Manifesto. A primeira parte do livro é um debate filosófico pesado, que só entende quem passou por essa graduação mesmo. Depois, a leitura se torna mais tranquila: uma boa análise, resumida embora não simplória, da história da sociedade capitalista, aliás da História.

Um intelectual cujo nome não me recordo já declarou, "Marx acertou no diagnóstico, mas errou na solução". De todo modo, suas ideias deveriam ser leitura obrigatória. Quem sabe assim o mundo não seria um pouco mais sensível à condição humana. Embora Marx tenha feito uma crítica ao socialismo utópico, considerando seu método de fato científico, eis um pouco de utopia:

Para nós o comunismo não é um estado que deve ser criado, ou ideal pelo qual a realidade terá de ser conduzida. Consideramos o comunismo o movimento real que supera o atual status quo.

MARX, K. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Nascimento de um heterónimo

 Narcissus, Vladimir Kush

Diferentemente do meu ortónimo, a mim me calha o que me dá na veneta. Escrevo o que me vem à mente, sem importar-me muito com os resultados. Creio pois que o superego, ou coisa que o valha, venha antes do que penso de modo que o que penso já foi previamente censurado, assim não careço de me ocupar com culpas morais. Ou para penetrar muito mais profanamente o sagrado templo lacaniano da psicanálise ouso dizer que em mim superego e ego são uma só coisa. Se tal coisa é possível, se, mais, tais conceitos abrangem, válido lembrar, um real funcionamento do aparelho psíquico humano. E lá me vou por estas incursões pretensas de filosofia. Resquícios. Ora, para ser-lhes honesto, confesso que é difícil desconstranger-me dele. Compartilhamos muita coisa, paixão pela escrita, pela língua, pela divagação. Em tempos globalizados e reforma ortográfica, uma mescla lexico-diacrítica, uma confusão sintática. Não dessa vez. Sou apenas um punhado de energia criativa.
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sábado, 18 de setembro de 2010

Olé!

Palenque de los Moros Hecho con Burros para Defenderse del Toro Embolad, Francisco José de Goya y Lucientes
 
Ultimamente, tenho lido, como em pequenas refeições durante o dia, a coletânea de crônicas gastronômicas A rainha que virou pizza, do jornalista J. A. Dias Lopes, editor da revista especializada Gula e autor da coluna Paladar n'O Estado de São Paulo. O livro reúne os textos publicados em ambos os veículos que assina, dispostos em ordem cronologica e traçando uma história da civilização ocidental em termos culinários.

São rememorados grandes nomes da nobreza europeia e também das Artes. O excerto abaixo é de uma crônica da qual não escapam os nomes de Goya, Picasso, García Lorca e Hemingway em apoio ao que em seguida se narra:

Segundo o livro Las rutas del toro em andaluzia, as touradas espanholas rendem oito milhões de quilos de carno por ano. Parece exagerado. Entretanto, levando-se o número a sério chagamos a uma conclusão surpreendente. Cada touro pesa em torno de 520 quilos. Perde metade no abate. Portanto, fica com 260 quilos. A seguir, são decartados cerca de 65 quilos de osso. Sobram mais ou menos 190 quilos de carne. Feitas as contas de maneira generalizada, os toureiros espanhois matam em cada temporada cerca de 42 mil touros. Convennhamos, é muita carne.

 LOPES, J. A. D. A Rainha que Virou Pizza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007.
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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Uma crônica gris

Chuva na praia, Carybé

Ultimamente eu tinha me habituado a passar as noites, feriados e finais de semana chez moi. Sair, apenas pelos compromissos cuja ausência implicaria sanção além da moral. Não que antes fosse comum o lazer além-lar, porém, as recentes contigências me puseram um tanto alheio à sociabilidade extra.

O domingo de hoje não seria diferente senão pela campanha de vacinação contra a meningite, devido ao grande número de casos na capital. Tomei meu caminho rumo ao posto de saúde quase à tardinha, fazendo um esforço para dissipar os pensamentos intrusos sobre grandes filas, o que vislumbra todo cidadão brasileiro que se veja nas dependências de um serviço público, e também sobre uma hipotética enfermeira mão-pesada a me aguardar. Quando enfim desarranjei essa nuvem de ideias amargas por sobre minha cabeça, a agulha já estava sendo descartada e um montículo de algodão me era cedido para estancar o sangue, ou qualquer que seja sua real função.

Deixei o local e a praia fez-se visão imediata. Sem hipérbole, realmente estava eu atravessando a avenida que me separava do calçadão da praia. Não pude evitar lembrar uma colega que a miúde convocava a um banho de realidade que levava imediatamente a um de mar, consequência da epifania do privilégio que é morar numa cidade costeira e bela como Salvador. De fato, estava certa. Embora os reveses da vivência local turvasse o proveitoso da situação, não lhe punham fim afinal. Mirava o horizonte algo nublado, algo azulado, uma mescla de cores sentida pelo bater do vento na pele. Nem por isso era um dia feio; pelo contrário, seduzia tolamente, feito mulher que não sabe da sua beleza.

Uma água de coco; o comprei de um senhor, figura simpática na voz gasta e ombros quebrantados, como se indiferente ao porvir, sem desdém, puro desleixo, cansaço. Segui pela orla, no fundo certa tensão comum à cidade grande; avante, porém. O azul-gris, o gris-azulado a soprarem seus ventos aveludados. A água de coco que perseverava, qual o senhor da barraca. Imaginei quando pereceriam, e nisso o olhar que se assentava em nada, vasto. Dos tempos que escrevo versos, ainda não sei o que é poesia, mas contemplação é sua profecia.
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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Prazer, escritores

Essa foi uma semana das que valem a pena recordar. Tive o prazer de conhecer pessoalmente as verdadeiras pessoas por trás dos livros e blogues de nossa literatura baiana, durante o lançamento dos livros de Ângela Vilma e Mônica Menezes. Noite e espaço agradáveis, o melhor foi cumprimentar todos esses que antes me eram letras e bytes: Gerana Damulakis, as autoras da noite, Ângela e Mônica, José Inácio, Eliana Mara Chiossi, Marcus Vinícius, Mayrant Gallo, Kátia Borges e Carlos Barbosa.

Terminei a noite com dois bons livros autografados das Cartas Bahianas, coleção muito da simpática, boas conversas e uma leitura crítica da minha poesia no blogue da Gerana.

Um grande abraços a todos!

domingo, 8 de agosto de 2010

Brasil, país tropical

Roupa estendida, Eliseu Visconti

Brasil, país tropical.
Há pressa nos dias,
Suor nas ruas,
Traseuntes nas calçadas,
Sol no céu,
Céu no cocoruto de quem trabalha.

Se lhe dermos chapéis,
Panos, canetas e pincéis, teremos roupa lavada,
Um quadro encardido e um poema fétido.


Via de regra, ao fazer uma postagem no blogue, busco uma imagem que possa de alguma maneira se assemelhar ao poema, conto ou o que seja, coisa que dá certo trabalho às vezes. O poema acima nasceu dessas buscas; bati o olho na pintura e os versos foram se formando. Como guardei o poema para o livro, em que são somente as palavras, senti a necessidade de colocá-los juntos aqui.


DE OLIVEIRA, Caio Rudá. Das Ideias. Pará de Minas: Virtual Books, 2010

terça-feira, 20 de julho de 2010

Lacan e A Casa dos Budas Ditosos


João Ubaldo Ribeiro, baiano itaparicano brasileiro



Algo me diz, falava-lhes eu... Ha-ha-ha-ha! Ha-ha-ha-ha! Ai, meu Deus... Desculpe a crise de riso, mas eu me senti, não sei por quê, meio Lacan, declamando todas aquelas baboseiras desconexas e ininteligíveis, e os crentes tentando decifrá-lo como quem decifra Nostradamus ou a pitonisa de Delfos, quando é claro que ele mesmo não sabia que merda estava falando, suspeito que tomava qualquer coisa para o juízo. Descia as ventas numa quatro carreirinhas gordas e ia à luta. O que se fala e escreve de merda engalanada na França é inacreditável, eu mesma nunca engoli nada dessa empulhação que confunde ininteligivilidade e chatice com profundidade, nem Lacan, nem Godard, nem Robbe-Grillet, nada dessas merdas, tudo chute e chato, e quem gosta é porque foi chantageado a gostar e, no fundo, se sente burro. Sartre ainda tinha umas coisas, sem bem que L'être et le néant é a mãe dele, mas ainda tinha umas coisas, às vezes era arrebatador. Não, não tenho nada que me sentir como Lacan, eu... Ha-ha-ha, desculpe, é dessas crises de riso que a gente não consegue deter. Lacan... imagine a cena, um maluco furibundo, com o miolo cheio de cocaína e anfetamina, despejando aquela enxurrada amazônica de non sequiturs esbugalhados em cima de uma platéia que nunca entendeu e até hoje vive tentando comicamente entender e terminando por falar do mesmo jeito e acabando invariavelmente por infelicitar alguém. Ele não escreveu porque, provavelmente, não conseguia sentar para escrever. Tem gente assim. Eu também, quando ficava ligadona, era assim, não parava quieta, nem na cama.


Nesse trecho d'A Casa dos Budas Ditosos, do grande João Ubaldo, eis o que a ética nunca permitiria a um psicólogo comentar sobre Lacan. Aliás, o bom-senso não deixaria ninguém se referir de maneira tão indecorosa a quem quer que fosse. Assim é grande parte da narração e narradora do livro: impudica, livre de mal-estares por quaisquer dos comentários, dos mais desavergonhados mas inocentes aos mais sórdidos. Abster-se da responsabilidade criativa, reclamando para si apenas a transcrição, verdade ou não, certamente ajudou João Ubaldo a escrevê-lo, ou publicá-lo, como seja. Tendo a crer que essa coisa de não-fui-eu é uma brincadeira de autor, afinal o humor de arrancar risadas que recheia a obra é algo tipicamente seu. Ainda não o terminei, mas o livro é ótimo. A narrativa ubaldiana chama para a leitura da luxúria desmedida numa mulher, mas revela a amplitude antropológica do humano moderno, da qual, verdade seja dita, Lacan passou longe.
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RIBEIRO, J. U. A Casa dos Budas Ditosos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Sobre ilhas

Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.

Mais do que por questões filosóficas, Lost e Saramago se aproximam pois o conto do autor português facilmente se toma como gênese da ilha fantástica que some e reaparece, da qual pouco se sabe. Para quem ainda não desistiu de solucionar os mistérios da Ilha, eis uma possível, intertextual origem.


SARAMAGO, J. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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quarta-feira, 7 de julho de 2010

Da irreversibilidade da poesia

L'eloge de la Dialectique, Magritte

Há sobretudo um poema de Ferreira Gullar que em seis versos alcança muito mais do que eu ou qualquer outro poderia num longo ensaio. Essa é pois uma das características que eu mais admiro na poesia, seu caráter de síntese; síntese em termos de brevidade e resumo, mas também no outro sentido de apoiada quase numa dialética hegeliana: o autor, o leitor e o poema.

Embora a poesia seja uma manifestação artística, sua diferenciação das demais artes e consequente singularidade é justo por esse flerte com a razão, fuga da estética pura, especialmente na poesia contemporânea. Assim, por mais convincente e sedutora que seja a ideia do poema, há sempre em que lê uma disposição de sufocar a poética proposta, pois essa é a dinâmica da construção de pensamento — tese, antítese e síntese.

Filosofia à parte, fato é que o poeta não pode rejeitar sua condição, ou, that is the question, pode? É o que pergunta Gullar.


That is the question
Dois e dois são quatro.
Nasci cresci
para me converter em retrato?
em fonema? em morfema?

...................Aceito
...................ou detono o poema?
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sábado, 26 de junho de 2010

Fernando Pessoa in English



Navegando pela web, entrando em links que levam a links, acabei chegando, dia desses, a um site em inglês sobre Fernando Pessoa. Confesso que pouco conheço dele, mas gostei bastante de uma tradução de um de seus mais famosos poemas, Autopsicografia, em especial da primeira estrofe, cuja rima me cativou. Seguem as duas versões, a original e a traduzida por Charles Bernstein, importante poeta estadunidense.


Autopsychography

Poets are fakers
Whose fake is so real
They even fake the pain
They truly feel

And for those of us so well read
Those read pains feel, so swell
Not the poets' double header
But the not of the neither

And so the wheels go whack
Ensnaring our logical part
In the train wreck
Called the human heart


Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm


E assim nas calhas da roda 
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Livro em mãos


Depois de algum tempo desde o anúncio aqui no blogue algumas pequenas alterações na capa, título e voilà... finalmente saiu o livro. Agora oficialmente escritor.
  
«Das Ideias» é o primeiro livro de Caio Rudá de Oliveira, em cujas páginas está registrado o mundo como vê o autor. Perguntado sobre do que se trata sua obra, não responde «tudo» porque este é um conceito tão impreciso quanto o de perfeição. Opta por dizer que o livro é sobre a vida, não a sua, mas a dos homens, sobre o mundo, enfim. Em verso ou prosa, todo o livro é poesia, a poesia do enigma da (in)existência. 

INFORMAÇÕES
ISBN: 9788579531378
Ano:
2010
Edição:
1
Número de páginas:
80
Acabamento:
Brochura
Formato:
14x20 cm 


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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Da intradução II

Stilleven met boeken en een viool, Jan Davidz. de Heem

a Talita Prates 

Sentimentos,
nem os menos nebulentos são traduzíveis
Ou melhor, o são,
porém, como tudo que se transpõe de uma língua para outra,
eis um pecado,
ei-la a traição.


Clique para conferir «Da intradução» de Talita Prates.
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sexta-feira, 30 de abril de 2010

A poesia engajada de Ferreira Gullar

Cortador de Cana, Portinari

Ferreira Gullar é um dos maiores intelectuais brasileiros, autor de vários livros de poemas e ensaios sobre arte. Desde que conheci sua obra, não deixei de lê-lo.

Gullar tem uma trajetória de vida peculiar, tendo se exilado durante alguns anos da ditadura. É quando escreve o Poema Sujo, livro de grande repercussão. Mas para mim, do que já li seu, Dentro da Noite Veloz é sua melhor obra. É nesse livro que está o suprassumo da poesia engajada de Gullar, do qual destaco o agridoce «O açúcar»:

O branco açúcar que adoçará o meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colherem a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.


GULLAR, Ferreira. Dentro da Noite Veloz. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Sobre escritores e suas drogas

Битва Льва и носорога, Олег Королёв
(Batalha do leão e do rinoceronte, Oleg Korolev)

As drogas desde há quase um século, pelo menos, tem sido um assunto de total rejeição social. Nem sempre foi assim, no entanto. Desde os primórdios, a humanidade faz uso dessas substâncias, e somente no último século devido a aspectos legais o proibicionismo veio a ser a tônica do discurso popular e científico.

Esse artigo tenta fazer um pequeno estudo acerca da literatura da droga, isto é, acerca da relação entre drogas, escritores e Literatura. Como aponta Marcus Boon em sua obra The Road of Excess, «literatura e drogas são dois domínios dinâmicos da atividade humana que evoluíram em paralelo e estão ligados com muitos outros campos, sejam eles humanos ou não».


Realidade social da droga
O universo científico ainda é relutante em deixar de lado o determinismo farmacológico das substâncias psicoativas, mas tem havido sérias mudanças no direcionamento dos estudos, muitos dos quais têm formado um novo paradigma para o entendimento do consumo de tais substâncias. Significa dizer que não mais se acredita que todas as pessoas estejam condicionadas aos mesmos efeitos, e que esses resultam de uma combinação da substância, expectativas do usuário e meio sócio-cultural.

Esse modelo tripartido do uso de psicoativos foi e é sustentado por várias autoridades, médicos, antropólogos e psicólogos, a citar o psiquiatra estadunidense Norman Zinberg, que ao desenvolver o trinômio drug-set-setting, provou que não há protótipos de usuários, contribuindo assim para a diminuição do preconceito diante deles.

Com efeito, a tendência da ciência é cada vez mais fazer ir por terra a informação aterrorizante, unilateral e preconceituosa do antigo discurso médico. Em outras palavras, busca-se atualmente substituir a visão das drogas enquanto causa dos problemas sociais. Alguns teóricos do assunto, inclusive, escrevem que os psicoativos em si não são bons nem ruins. Mais uma vez cita-se Boon, quando ele diz que «as drogas não tem sentido fora do contexto nas quais são usadas».


Drug literature
O fato é que se não se aceita a interpretação científica atual para o fenômeno das drogas, condena-se figuras ilustres da História. Imperadores, intelectuais e escritores, todos eles se revelam, em alguma medida, consumidores de psicoativos. Mas o que vem a ser a literatura da droga, ou drug literature? Essa é uma pergunta que Boon traz, com a reserva de considerar esse conceito amorfo, dado que, ainda que seja excluída a literatura científica da catalogação, não se chega à sua definição exata. Para o presente artigo, a literatura da droga consolida-se como o conjunto de textos artísticos ou não que mantêm alguma relação com o uso de substâncias psicotrópicas, seja como matéria de escrita ou artifício do modus operandi do autor.

Encontrar um ponto de partida para o estudo da drug literature não é tarefa em que todos costumam ser unânimes, mesmo porque essa seria uma ocupação arbitrária. Alguns vêem no poeta inglês Coleridge um divisor de águas nesse sentido, um introdutor da noção de exploração do mundo interior através do uso de psicoativos. Porém, Boon credita ao também inglês Thomas de Quincey e sua obra Confessions of an English Opium Eater o pioneirismo nessa relação simbiótica entre drogas e literatura.

A partir dessas considerações, surge outra questão. Sendo Coleridge e De Quincey contemporâneos e precursores, seria a literatura um campo livre das drogas antes deles? Absolutamente não. Estudiosos apontam que as drogas sempre tiveram e ainda possuem uma função na sociedade que, provavelmente, permanecerá ao longo de toda a existência humana.
Homero, na Odisséia, faz menção a um analgésico provavelmente derivado do ópio. Também Marco Aurélio, imperador romano e filósofo nas horas vagas, supostamente está entre um dos antigos consumidores de ópio. E esses são apenas dois exemplos do comuníssimo hábito do ópio, na Antiguidade.

Durante a Idade Média, devido às circunstâncias da época, não é de se admirar que se encontre pouca ou nenhuma referência às drogas. Sequer falar nelas era risco de ser ligado a rituais de magia e ir parar na fogueira, conseqüentemente.

Na época seguinte, no entanto, com o Renascimento, já não se fala no binômio drogas-concupiscência, associação perigosíssima séculos antes, e vestígios de liberdade passam a ser esboçados. A partir desse tempo o ópio ressurge com força total: Goethe, Novalis, Coleridge, Shelley, Byron, Wordsworth e Keats, mostram consumo regular de ópio. Por sua vez, Baudelaire, Rimbaud, William James e Nietzsche interessam-se ou escrevem sobre a ebriedade.

Avançando a linha do tempo, Sir Arthur Conan Doyle foi um famoso consumidor de cocaína, cujas condições de usuário ele transfere para seu personagem mais ilustre, o detetive Sherlock Holmes. Ainda sobre a cocaína, cita-se Freud e seu entusiasmo com a substância, da qual foi um defensor em parte de sua vida, e provavelmente um usuário durante toda ela; ainda assim, um dos mais brilhantes sujeitos de todos os tempos.

Tem-se, então, os clássicos casos de Balzac e Jean-Paul Sartre: em comum, o abuso de substâncias estimulantes, hábitos de vida pouco saudáveis e excesso de trabalho num ritmo alucinante. Acredita-se que Balzac tenha consumido em torno de 50.000 xícaras de café em seus 51 anos de vida. Também Marcel Proust e Francis Fitzgerald, George Buffon, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau eram grandes bebedores de café. Vários fatores parecem explicar esse fato, como a legalidade do produto e a facilidade de preparo, além de ser uma bebida aprazível ao paladar.

Kerouac aparece como um nome forte, quando o assunto é uso de anfetaminas. Diz a lenda que ele escreveu sua obra principal, On The Road, em apenas duas ou três semanas.

O filósofo Jean-Paul Sartre é frequentemente lembrado pelo seu uso constante de drogas, entre as quais corydrane, composto de anfetamina e aspirina. Segundo a biógrafa Annie Cohen-Solal, ele acordava com uma xícara de café e um tablete de corydrane, depois dois, três – quantos fossem enquanto durasse a escrita. Dessa maneira foi escrito toda A Crítica da Razão Dialética.
No outro lado da rua, em contrapartida ao speed das anfetaminas, tem-se a maconha e o haxixe e sua “serenidade” induzida. Na coleção As Mil e Uma Noites, clássico da literatura persa, há pelo menos duas histórias envolvendo o haxixe. Porém, é na França do século XIX que o consumo essa droga parece ter sido comum entre alguns grupos.

Moreau de Tours é acreditado ter introduzido o haxixe na cena artística parisiense, através do Club des Hashishins – entre os artistas que freqüentavam estavam Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Eugène Delacroix, Honoré Daumier, Alphonse Karr, Gautier, e Baudelaire.

Há também um manuscrito publicado por um jornal austríaco, supostamente escrito por Goethe, em que ele narra uma experiência com o haxixe. O texto seria, inclusive, a primeira menção à fome aguda provocada pelo consumo de tal substância, conhecida como «larica». De acordo com Boon, Coleridge e De Quincey não tem seus nomes associados apenas ao consumo do ópio, mas também teriam experimentado haxixe em alguma oportunidade.

O artigo não poderia estar completo sem tocar nos psicodélicos. Visto que esse seria um campo muito fértil, estão relatados aqui apenas alguns casos de autores e suas «viagens». Nesse sentido, encontram-se nessa galeria a obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e sua evidente referência ao cogumelo alucinógenos amanita muscaria, a aletheia de Heidegger, Jünger – utilizavam LSD –, Foucault e Deleuze, o escritor Witkacy, o surrealista Artaurd, o belga Henri Michaux, e, óbvio, Aldous Huxley e seu grande interesse sobre a percepção humana. Muitos outros artistas, músicos e escritores, de alguma maneira ou de outra, estiveram ligados com os psicodélicos, especialmente no século passado, mas a lista é tão grande e tão diversa que seria insuficiente enumerá-la aqui, merecendo maior e destacada atenção numa outra oportunidade.

Considerações finais
Conforme foi visto, ao longo da história da humanidade, drogas e literatura estiveram de algum modo conectadas, embora seja comum entender a arte literária como uma zona pura, etérea, em cujos domínios nada parecesse imperar senão a criatividade e o esforço da técnica. No entanto, a droga aparece na história da literatura como uma ferramenta para expandir a percepção e conceber histórias fascinantes ou pontos de vista aguçados, ou para intensificar o ritmo de escrita. De todo modo, as drogas em suas mais diversas representações estiverem e provavelmente estarão presentes no fazer literário, simplesmente porque sendo essa uma atividade humana torna-se impossível ver o autor como uma entidade sobrehumana.

Foi possível identificar determinados padrões de uso de certas substâncias, o que confirma a idéia da droga enquanto elemento social, e como tal sujeito às transformações que as sociedades passam. Os escritores opiômanos refletiam uma crise da subjetividade, os célebres usuários de cocaína, como Freud, desafiaram paradigmas, as anfetaminas foram coadjuvantes em várias obras em um século XX marcado pela rapidez. Enfim, escritores e suas obras são resultado do seu contexto sócio-cultural, ao mesmo tempo em que o transformam. Em última análise, a escrita, ato tão individual, é sempre moldada pelo social.



* Esse artigo foi adaptado de um pequeno ensaio acadêmico para a disciplina Sócio-antropologia das Drogas, ministrada pelo professor Edward MacRae, do curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Para consultar as referências, clique aqui.
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quinta-feira, 8 de abril de 2010

A poesia de Georgio Rios – Alberto Caeiro em tempos modernos

Não sei ao certo a intenção de Georgio com o título do livro, mas sei que descreve bem a sensação que segue o fechar da última página, impressão de depois da chuva, enlevo. E livro bom é aquele que enleva quem lê, e o faz ir à busca de mais e mais do autor.
Como esse é praticamente o livro de estreia de Georgio Rios, 73 páginas editadas pela Editora Multifoco, do Rio de Janeiro, resta aguardar o próximo, como o sertanejo que espera as chuvas de janeiro, ou conferir o samizdat-like Só Sobreviventes (Editora Tulle, 2008), livro em parceirada.
Chuva, sertão e poesia. Georgio é sujeito que trabalha esses três elementos, misturando-os mesmo com a desproporção de seus ingredientes. E é isso que o torna um poeta agudo: o seu escrever não é de vez em quando porque algo aconteceu, pelo contrário ele faz acontecer algo do nada. É o que é a poesia, fazer chover nos versos escritos na terra árida.
A alquimia desse jovem poeta vem de Riachão do Jacuípe, interior da Bahia, e perambula “entre pés de algarobeira”. Essa árvore que lhe ornamenta o cenário é inspiração, matéria-prima de seus versos, e percebe-se que é dessa maneira que os compõe, em estalo, com espontaneidade. Suas transmutações, / Do fogaréu, fez-se o poema. / (Depois da Chuva, pág. 15), /Um sol / em / uns sopros / sopranos / saxofones (...) / dentro da inviolável esfera que pensa. / (Depois da Chuva, pág. 35), / Do branco / do teus cabelos / a neve pela primeira vez (Depois da Chuva, pág. 54).
Há entre o leitor e escritor diálogo de sensações; existe porque Georgio é poeta da natureza e do cotidiano – / O vento lento / varre a calçada / levando a poeira e o sol / (Depois da Chuva, pág. 47), / Era noitinha, / um frio estava lá fora, / soprando suas vozes, / no vidro da janela / (Depois da Chuva, pág. 65). É, pois, um poeta do admirar e do trivial. Seus versos são demasiado sonoros e não prescindem de ser lidos em voz alta, para que alcancem toda a sua expressão. A aliteração seja porventura sua figura preferida: / Desligar o celular / As células. / (Depois da chuva, pág. 20), além do que, já basta como exemplo os versos acima citados.
Foi como quem assistisse a chuva cair que li esse livro de Georgio, deslumbrado e torcendo para que não acabasse. Depois da Chuva é dividido em três partes: Das garrafas ao mar aberto, haicais e Garrafas beijando o mar depois da chuva. Mas esse livro nasce já na introdução, o poeta nos avisando que cada poema seu é uma garrafa jogada ao mar, como diz Quintana, e verdade também é que, sendo assim, esse livro é o pequeno tesouro desse poeta, sinal de que ele conseguiu ser resgatado, suas mensagens chegaram à leitura de outros e enfim ele se achou no mar de poesia, podendo agora seguir orientado nesse oceano.
Essas e outras metáforas estão nos parágrafos que preambulam o livro. Por isso digo que a poesia emana desse jovem escritor, ora nos versos ora nos recados ou colóquios.
Com relação às suas influências, desde o persa e longínquo Omar Khayyam ao nosso mais recente Leminski, Georgio se encontra. Ou tenta se encontrar, e ele o sabe. Sabe que sua voz precisa se afirmar, ampliar-se, perfazer caminhos, enfrentar o mar alto, fugir das grandes ondas, e soube, quando da leitura desse sexto parágrafo, que ao menos já encontrou seu rumo, o do lirismo que habita no dia-a-dia de cada um, no pôr-do-sol, no vento balouçando as folhas, no espelho, nos pássaros, na flor, na poça d'água e no mar e no móvel empoeirado, onde quer que sua voz ecoe.
Particularmente, o que mais gosto em Georgio é o seu haikai. Penso ser esse o ponto de equilíbrio de sua obra, em que o lirismo cede e ele lança mão de uma poesia moderna e arrojada, isso somado à ocorrência de temas mais tradicionais do hakai, a natureza essencialmente. Nota-se aqui o quanto Leminski lhe serve de referencial teórico e na práxis poética.
Por fim, resta-me um comentário geral a respeito desse poeta, em cujo esforço criativo prevalece uma espécie de neobucolismo, seja em haikai ou versos livres. Georgio, portanto, agrega as características da vida natural, sem malícias, campestre, de certo modo, e a modernidade, com seus blogues, celulares e instantaneidade; como se Pessoa tivesse se adaptado aos dias de hoje.

Publicada originalmente na revista eletrônica de literatura Verbo 21.
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