terça-feira, 20 de julho de 2010

Lacan e A Casa dos Budas Ditosos


João Ubaldo Ribeiro, baiano itaparicano brasileiro



Algo me diz, falava-lhes eu... Ha-ha-ha-ha! Ha-ha-ha-ha! Ai, meu Deus... Desculpe a crise de riso, mas eu me senti, não sei por quê, meio Lacan, declamando todas aquelas baboseiras desconexas e ininteligíveis, e os crentes tentando decifrá-lo como quem decifra Nostradamus ou a pitonisa de Delfos, quando é claro que ele mesmo não sabia que merda estava falando, suspeito que tomava qualquer coisa para o juízo. Descia as ventas numa quatro carreirinhas gordas e ia à luta. O que se fala e escreve de merda engalanada na França é inacreditável, eu mesma nunca engoli nada dessa empulhação que confunde ininteligivilidade e chatice com profundidade, nem Lacan, nem Godard, nem Robbe-Grillet, nada dessas merdas, tudo chute e chato, e quem gosta é porque foi chantageado a gostar e, no fundo, se sente burro. Sartre ainda tinha umas coisas, sem bem que L'être et le néant é a mãe dele, mas ainda tinha umas coisas, às vezes era arrebatador. Não, não tenho nada que me sentir como Lacan, eu... Ha-ha-ha, desculpe, é dessas crises de riso que a gente não consegue deter. Lacan... imagine a cena, um maluco furibundo, com o miolo cheio de cocaína e anfetamina, despejando aquela enxurrada amazônica de non sequiturs esbugalhados em cima de uma platéia que nunca entendeu e até hoje vive tentando comicamente entender e terminando por falar do mesmo jeito e acabando invariavelmente por infelicitar alguém. Ele não escreveu porque, provavelmente, não conseguia sentar para escrever. Tem gente assim. Eu também, quando ficava ligadona, era assim, não parava quieta, nem na cama.


Nesse trecho d'A Casa dos Budas Ditosos, do grande João Ubaldo, eis o que a ética nunca permitiria a um psicólogo comentar sobre Lacan. Aliás, o bom-senso não deixaria ninguém se referir de maneira tão indecorosa a quem quer que fosse. Assim é grande parte da narração e narradora do livro: impudica, livre de mal-estares por quaisquer dos comentários, dos mais desavergonhados mas inocentes aos mais sórdidos. Abster-se da responsabilidade criativa, reclamando para si apenas a transcrição, verdade ou não, certamente ajudou João Ubaldo a escrevê-lo, ou publicá-lo, como seja. Tendo a crer que essa coisa de não-fui-eu é uma brincadeira de autor, afinal o humor de arrancar risadas que recheia a obra é algo tipicamente seu. Ainda não o terminei, mas o livro é ótimo. A narrativa ubaldiana chama para a leitura da luxúria desmedida numa mulher, mas revela a amplitude antropológica do humano moderno, da qual, verdade seja dita, Lacan passou longe.
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RIBEIRO, J. U. A Casa dos Budas Ditosos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Sobre ilhas

Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.

Mais do que por questões filosóficas, Lost e Saramago se aproximam pois o conto do autor português facilmente se toma como gênese da ilha fantástica que some e reaparece, da qual pouco se sabe. Para quem ainda não desistiu de solucionar os mistérios da Ilha, eis uma possível, intertextual origem.


SARAMAGO, J. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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quarta-feira, 7 de julho de 2010

Da irreversibilidade da poesia

L'eloge de la Dialectique, Magritte

Há sobretudo um poema de Ferreira Gullar que em seis versos alcança muito mais do que eu ou qualquer outro poderia num longo ensaio. Essa é pois uma das características que eu mais admiro na poesia, seu caráter de síntese; síntese em termos de brevidade e resumo, mas também no outro sentido de apoiada quase numa dialética hegeliana: o autor, o leitor e o poema.

Embora a poesia seja uma manifestação artística, sua diferenciação das demais artes e consequente singularidade é justo por esse flerte com a razão, fuga da estética pura, especialmente na poesia contemporânea. Assim, por mais convincente e sedutora que seja a ideia do poema, há sempre em que lê uma disposição de sufocar a poética proposta, pois essa é a dinâmica da construção de pensamento — tese, antítese e síntese.

Filosofia à parte, fato é que o poeta não pode rejeitar sua condição, ou, that is the question, pode? É o que pergunta Gullar.


That is the question
Dois e dois são quatro.
Nasci cresci
para me converter em retrato?
em fonema? em morfema?

...................Aceito
...................ou detono o poema?
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