domingo, 30 de setembro de 2012

Retalhos

Arlequín y payaso con careta, Rafael Zabaleta

Porque posto à minha frente,
num tombo abrupto como caído do céu,
um baú sem adjetivos.
Adjetivá-lo deveria eu
conforme bel-prazer:
vazio e limpo que era
qual papel de escrever.

Abri-o e abril: escancarado o zê,
entre baralhadas letras que não havia,
alfabeto escasso qual palavras agora
corporificando meu idioleto
na materialidade de um cadáver vivo:
tronco que dói sem quê,
febre que arde os olhos,
os mesmos que não viram o erro.
São pensamentos doídos,
esses sim enxergam os desacertos
sem que admitam a pretérita derrapagem.
Com um estômago forrado de medo
e temperado com pitadas de verdade,
dou um passo atrás e engulho,
envenenado de realidade.

Posta uma maquiagem gris de alegria,
havia ido sorrir a vida, sem, no entanto,
chegar a viver nenhum sorriso.

Daí eu pensar que poderia ter sido diferente,
que eu poderia ainda ser um artista.
que eu poderia não ter me rendido, havia essa opção.
Que eu poderia simplesmente tê-la mantido
a mesma face limpa, ainda que triste, mas honesta,
verdadeira, feliz porque melancólica.
Uma face leve, sem pó nem batom.

E se era feliz porque escolhida a melancolia,
agora melancólico por ter optado pela felicidade.
Nesse baterrebate do direito ao esquerdo,
sempre houve o meio, reto e desobstaculado.

Agora retalho fragmentos de futuro
enquanto sorvo um paradoxo gelado,
que mais me faz tiritar, além do coração gelado,
que não degela a despeito de calorosas lembranças.

Se não ouço cantarem os galos,
troco o silêncio por um pincel
para dolorir a tristeza no rosto
e desenhar um poema surrealista na parede,
à espera de um confortante boa-noite,
um beijo na bochecha e um perfume vermelho
repousando numa caixa de presente.

Não seja um delírio, vivo um real irrealizável,
pois pela lógica do desejo, seria diferente do que é.
.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Poema aos prantos


Crying Girl, Roy Lichtenstein

No projeto que há pouco mentalmente desenhava
do cotidiano dos fazeres domésticos,
um ato falho traz o enxugar de prantos.
Ato contínuo, um poema escrito aos prantos insecáveis.

Derramados aos últimos dias floridos de inverno,
lembro-me, prantos pretéritos que aniversariam
sob a garoa-guia de novos ares. Terei confessado
de minha acertada errância úmida e confusa?

Pranteio novamente, independente de equinócios
ou reminiscências, porque vem de estranhas entranhas,
estrangeiras e estranguladas.

Pranteio retroativamente para cultivar um futuro,
a despeito de também lágrimas e gotas que lhe embargam.
Faço-as seiva e sangue, que irrigam e derramam ao primeiro talho.
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