sábado, 20 de junho de 2009

Crônica de uma cidade adormecida

É quando a cidade dorme que consigo pensar. Quando acordada, é o capitão-do-mato que nos mantém na linha conforme a vontade do senhor; não tolera atraso, desculpas ou ineficiência, e está atenta, regendo uma vida compulsória.

Nasce o dia e acordamos, não porque o sono já nos bastou, mas pelas obrigações diárias. Desempenhamos nossas funções e esquecemos de todo o resto. Eis o viver. Para nos tirar da rotina, nada como uma insônia inesperada. Levanto, vou à janela, tomo emprestado um pouco de ar, agora menos carregado de poluição, e sento em frente à TV - monótona programação aberta. Vou à cozinha, bebo um suco e volto a deitar. Já não sei se é insônia ou calor. Dessa vez um leite quente com chocolate, enquanto olho uns blogues sem sal. Por fim, outra passada na janela. A avenida lá na frente, vazia. Não é a mesma das horas de sol. Um carro ou outro percorre o asfalto cansado, insone como eu. Tento advinhar para onde vai uma hora dessas. Talvez já esteja retornando. De todo modo, ambas as alternativas não me dizem respeito.

Olho a passarela em que fui assaltado há alguns dias. Agora parece ser um lugar seguro. Mas só parece. Escondido em algum lugar que eu, nem a possível vítima, possamos ver deve estar o bandido, como o que levou meu celular. Ofício de assaltante - hora extra ociosa. E bandido lá sabe o que é ócio?

Os pontos de ônibus estão desertos, diferentes dos formigueiros que são durante o dia. Não é o caso dos que vejo, mas algum em outro canto da cidade pode servir de abrigo para um mendigo. Abrigo contra o quê? Nem contra os perigos da madrugada, nem contra o frio. Talvez contra a chuva, porém não chove hoje.

Os prédios vizinhos dormem. Sequer uma janela acesa, o que me faz pensar que sou o único acordado da cidade. Isso é falso. Há os motoristas que passam maltratando o asfalto, o assaltante à espreita não se sabe onde e o mendigo que dorme por aí. E há também meu companheiro de apartamento que se levantou agora. Foram os meus pensamentos? Ele passa, mudo com se ainda dormisse, e vai à cozinha, caminho certo. Também não puxo papo. Esse sou eu, também calado, não dado a conversas desnecessárias. É por isso que respeito o silêncio alheio. Sei o quanto é importante. E aí me dou conta de que pode ter sido a TV dele ligada que tenha colaborado com minha insônia. A princípio sinto raiva, que se esvai. Não fosse ele, ainda que involuntariamente, eu não estaria aqui, pensando, vendo a cidade adormecida. Os capitães-do-mato também dormem. E enquanto o fazem eu sou livre. Livre para ver, sentir, pensar, perceber cada detalhe de uma paisagem tão costumeira porém surpreendente.

O sol se aproxima. Eu posso vê-lo, não em seus primeiros raios, mas nas luzes que começam a iluminar cômodos nos prédios ao lado, na fumaça da padaria que começa a subir, no caminhão de lixo e seu barulho característico que vão ao longe. É quando ouço os capitães vestirem suas roupas e empunharem suas armas. Daqui a pouco eles estarão atentos, colocando-nos nos eixos. Tudo bem. Hoje eu tive minha pequena alforria.

3 comentários:

  1. Olhei muita coisa por aqui. A maneira como vc escreve é muito bacana. Gostei bastante das poesias. Geralmente elas traduzem melhor o abstrato.
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Eu adoro descrições assim...
    Crônicas maravilhosas você produz. tenho algumas no estilo.
    valeu.

    ResponderExcluir
  3. Acredite, não foi alforria, mas um vago espasmo de liberdade... OU então uma nova forma de prisão.

    Não vou me alongar.

    ResponderExcluir