terça-feira, 23 de agosto de 2011

A poesia de Cajazeira

O ovo da ema, Carybé

Las Manos (Carybé)

Profusas rachaduras ressequidas
da terra devastada em tua face
acusam de fugaz e rude a vida
dos homens, das mulheres, das cidades.

Ai de nós a teus olhos de Guernica,
que a tudo viram, nada mais assombra.
Talvez nosso borgeano olhar persiga
zarolhamento a cor de tua sombra.

No verso o olhar comum só vê palavras,
mas tu, que danças tango feito samba,
mestre das artes, viste luz e graça.

Ah, Bahia, ferrada a nu mulata
aos pés de teus pincéis de argêntea lança,
baiano Don Quijote de la Plata!


Quando li os primeiros poemas do livro Mais que sempre, de Luís Antonio Cajazeira Ramos, eu pensei precisar de um bloco para anotar vários de seus versos. À medida que lia, decidi que melhor seria tê-lo o próprio livro como esse caderno de citações, pois toda a obra é uma coleção de destaque. Particularmente, divido-a entre poemas brilhantes, bons e os que não sou capaz de compreender. Sua forma predileta é o soneto, e o faz com a naturalidade de quem realmente domina o ofício, exerce-a como profissão de fé. Certamente inveja o ourives quando escreve, labor cujo resultado é o ouro mais puro. Todo esse artifício é notório na poesia de Cajazeira, cuja propriedade retórica é ímpar entre os poetas de hoje. Tem sobre as palavras o mesmo domínio do músico sobre seu instrumento, um virtuose. Versa sobretudo o amor, também a vida, a morte, o ato poético, versa o verso. Eis uma leitura exemplo do paradoxo do hedonismo: quanto mais se avança, vorazmente, no que é bom, menos se lhe tem.

RAMOS, Luís Antonio Cajazeira. Mais que sempre.
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sábado, 6 de agosto de 2011

Só para loucos

She-Wolf, Jackson Pollock

Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante um lobo da estepe (...) quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante (...) Era isso o que ocorria ao Lobo da Estepe, e pode-se perfeitamente imaginar que Harry não levasse de todo uma vida agradável e feliz (...) Harry também conhecia de quando em vez exceções e momentos ditosos em que tanto o lobo quanto o homem podia respirar, pensar e sentir em harmonia (...) Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sengue materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry.


Harry Haller, outsider, Steppenwolf, um lobo da estepe, indivíduo deslocado, extraviado do mundo, averso ao mundo e aos valores burgueses, incapaz, no entanto, de identificar-se com a vida das pessoas comuns. Mantém um estilo de vida próprio, inscrito na dualidade de seu ser: se algo não lhe agrada, tampouco seu oposto. Não consegue se entregar à vida, vivê-la. O Teatro Mágico é sua redenção.

HESSE, H. O Lobo da Estepe.
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sexta-feira, 5 de agosto de 2011