segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Aclarando preconceitos

 Marter der zehntausend Christen, Albrecht Dürer
 
Antes de colocá-lo de volta na estante, gostaria de compartilhar uma passagem d'O Livro das Drogas: Usos e abusos, desafios e preconceitos de Antonio Escohotado.

A primeira vez que entrei em contato com os escritos desse senhor foi no ano passado, enquanto aluno de uma disciplina na faculdade socioantropologia das drogas o que me inspirou a escrever um artigo sobre escritores e psicoativos. Algum tempo depois mas há algum tempo atrás, encontrei por acaso o referido livro num sebo virtual, comprei-o e só agora pude lê-lo. De início, sabia que não era um livro propriamente acadêmico, no entanto, não imaginei que chegasse ao ponto de estar mais para memórias.

Ainda que seja um livro crítico com relação à questão das drogas, numa abordagem que, conforme o próprio subtítulo avisa, vai em advocacia dessas substâncias demonizadas pela sociedade, fato é que o autor surpreende com as narrativas de suas peripécias ebriosas.

A passagem que quero dividir é esta que me fez rir e por um momento acreditar que estava lendo um romance ou texto fictício.

Tive ocasião de comprovar suas potência [do THC] há mais de uma década e meia, quandos dois amigos e eu ingerimos uma quantidade excessiva (pensando que não o fosse) e fomos visitar a pinacoteca de Munique. Passaram-se quase duas horas sem efeito algum, até que de repente começou a nos impregnar. O ar se povoou de pequenos seres em suspensão, como se estivéssemos dentro de grandes aquários, invisíveis até então, sulcados por um clarão de luz intermitente, enquanto os retratos e as paisagens não só emitiam o calor humano de pessoas vivas mas uma música adequada a seus tons de cor. Recordei imediatamente os comentários de Baudelaire e Gautier sobre transformações de formas em sons, enquanto uma progressiva imobilidade ia tomando conta de nossos corpos; a mim, por exemplo, era impossível tirar a mão de um bolso da jaqueta, e comprevei que meus amigas estavam em diferentes salas, compleatamente quietos, cada qual em frente a um quadro. Consegui chegar em uma sala com diversos Rubens (entre eles Cristo e Maria Madalena) e alguns Dürer, atônito ante as mudanças perceptivas, quando o tempo se deteve e também precisei me sentar. As pinturas deixaram de ser telas e se transformaram em janelas para diferentes paisagens, suavemente animadas de movimnentos, que transmitiam uma enormidade de sentidos. Passar de um a outro era percorrer universos complexos, uma inefável imersão em épocas e climas espirituais passados que de repente estavam ali, vividos nos mínimos detalhes, oferecidos como se oferece o dia a quem abre as janelas do quarto, com os sons, aromas e brisas do momento.

ESCOHOTADO, A. O Livro das Drogas: Usos e abusos, desafios e preconceitos. São Paulo: Dynamis Editorial, 1997.
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3 comentários:

  1. "Passar de um a outro era percorrer universos complexos, uma inefável imersão em épocas e climas espirituais passados que de repente estavam ali, vividos nos mínimos detalhes, oferecidos como se oferece o dia a quem abre as janelas do quarto, com os sons, aromas e brisas do momento."

    Lendo isso, até dar vontade de usar drogas. (risos) Mas, ainda assim, prefiro me drogar através da literatura. Com ela, posso ter toda essa sensação e um pouco mais.
    Abraço, Caio.

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  2. P.S: Gostei do teu artigo. Muito interessante. Um grande abraço.

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