sexta-feira, 30 de abril de 2010

A poesia engajada de Ferreira Gullar

Cortador de Cana, Portinari

Ferreira Gullar é um dos maiores intelectuais brasileiros, autor de vários livros de poemas e ensaios sobre arte. Desde que conheci sua obra, não deixei de lê-lo.

Gullar tem uma trajetória de vida peculiar, tendo se exilado durante alguns anos da ditadura. É quando escreve o Poema Sujo, livro de grande repercussão. Mas para mim, do que já li seu, Dentro da Noite Veloz é sua melhor obra. É nesse livro que está o suprassumo da poesia engajada de Gullar, do qual destaco o agridoce «O açúcar»:

O branco açúcar que adoçará o meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colherem a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.


GULLAR, Ferreira. Dentro da Noite Veloz. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
.

6 comentários:

  1. com toda sinceridade, ele faz partes dos poetas "boa praça". da parte cultural que vivia reclamando do mundo em seus belos apartamentos.

    gosto da forma como ele escreve, sim. mas o engajamento dele me parece meio hipócrita

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  2. não creio que seja hipócrita, pois não só em belos apartamentos ele viveu, mas também isolado e exilado na argentina.

    drummond, sim, apesar de toda minha admiração, escreveu coisas ditas engajadas que passavam pelo seu crivo existencial.

    no fim a poesia é isso mesmo. se fizessem outra coisa que não escrever não seriam poetas.

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  3. é bonito sim, ler poesias contextualizadas com a vida do autor.
    Mas concordo com Caio, o fazer poético é mais transmitir o engajamento, que necessariamente sê-lo.
    é colocar-se uma vez naquele lugar, indignar-se com, mover-se. Talvez seja mesmo mais fácil mover as canetas ao lugar do corpo, depende do que se faz melhor.

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  4. Fazer literatura engajada é muito difícil, pelo que carrega de risco ao se aproximar do piegas. Ele sabe fazer, sim. Ainda assim, avizinhando-se do risco.

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  5. Querido Caio, sempre acompanho seu blog, com vontade de estirá-lo no chão e esparramar minha atenção toda sobre ele, por alguns minutos. As vezes o faço, mas fico a proletar um comentário. Só quero lembrá-lo que eu e tantos outros estamos aqui, de fininho, sem bater na porta, a te espiar nesse baú 'das ideias...'. Outro aviso é que meu blog mudou completamente, convido-o a se juntar a mim, novamente, como seguidor, e dialogar sempre que quiser. abraços

    www.bsproducao.blogspot.com

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